Inconspícua

É domingo à tarde. O notebook está aberto na mesinha da varanda, em frente ao meu pé de maconha que cheira forte, ainda que pareça estar morrendo. O sol está batendo na mesinha, porque minha mesa — espaço reservado para meu ritual de escrita — está ocupada pelo macho que decidi carregar a tiracolo pelos últimos anos e não consigo me desvencilhar. O som ambiente está invadido pelo pagode dos vizinhos crossfiteiros que durante a semana malham e aos finais de semana fazem churrasco com pagode alto e muita falação. Ambiente totalmente não ideal para a escrita. Me sinto privada dos meus rituais de escrita, tão cuidadosamente elaborados durante anos. Como a palavra pode encontrar seu lugar no corpo do texto, ou, como o papel em branco pode virar um corpo feito de palavras quando meu caos criativo é engolido pelo excesso de presença ruidosa de tantos outros? Tudo é absolutamente insuportável. Desejo o silêncio, a escolha pela solidão silenciosa da escrita de onde se pode escutar o sussurro do corpo pedindo tradução, transcrição.

Chega um momento na vida do qual ninguém escapa, e penso que seja inevitável, do qual não se pode escapar, em que tudo é posto à prova: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Menos as crianças. As crianças jamais são postas em questão. E essa dúvida cresce ao nosso redor. Essa dúvida é solitária, é a dúvida da solidão. Nasce daí, da solidão. Já é possível dar nome à palavra. Acho que muitas pessoas não seriam capazes de suportar o que digo, elas fugiriam. A dúvida é escrever. Portanto, é o escritor também. E com o escritor o mundo inteiro escreve. Sempre soube disso. (Duras, 1993/2021, p. 32)

Estou em pleno processo de escrita da minha tese de doutorado. Há dias em que consigo escrever por horas e quando esses dias se tornam consecutivos, consigo acreditar que algo ali se escreve e se tornará legível. Esses dias são raros, interrompidos pela vida, pelo trabalho, pelas inibições neuróticas, pelos impedimentos da angústia, pelos medos e nãos que a gente vai recebendo e devolvendo da vida. Na maioria dos dias, há um imperativo que insiste na impossibilidade de escrever. Há sempre alguma urgência para responder ou uma demanda para sanar. É domingo, mas nada cessa de convocar à não escrita.

Quem nos deu permissão para encenar o ato da escrita? Por que a escrita parece tão desnatural pra mim? Vou fazer qualquer coisa para adiá-la — esvaziar a lixeira, atender o telefone. […] O problema é focar, se concentrar. O corpo se distrai, sabota com centenas de ciladas, uma xícara de café, lápis pra apontar. A solução é ancorar o corpo a um cigarro ou outro ritual. E quem tem tempo ou energia pra escrever depois de cuidar do marido ou da amante, da cria, e tantas vezes de um trabalho fora? Os problemas parecem intransponíveis quando decidimos que, mesmo com casamento ou crianças ou trabalho, nós vamos ter tempo para escrever. Esqueça o teto todo seu — escreva na cozinha, se tranque no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da assistência social, no trabalho ou entre as refeições, entre o sono e a caminhada. Eu escrevo sentada na privada. Nada de trechos longos na máquina de escrever, a não ser que você seja abastada ou tenha um mecenas — talvez você nem tenha uma máquina de escrever. Enquanto varre o chão ou lava as roupas, ouça a cantoria das palavras no seu corpo. Quando você tá deprimida, nervosa, machucada, quando a compaixão e o amor te dominam. Quando você não pode fazer nada além de escrever. Tantas distrações — que me invadem mesmo quando estou tão envolvida com a escrita, quando quase cheguei lá, aquele porão escuro onde alguma coisa pode pular e vir pra cima de mim. As formas que uso para corromper a escrita são muitas. (Anzaldua, 1980/2021, p.55)

Claro que eu estaria mentindo se continuasse a afirmar que são apenas as urgências do mundo que me corrompem o desejo. As formas que uso para impedir meu desejo, são múltiplas. A passagem do desejo — gesto de escrita — ao ato de escrita é um giro enferrujado, constantemente suturado e saturado de surtos e paralisações. Escrever é não esquecer. E tudo que neuroticamente fazemos, incessantemente, é esquecer. Esquecer que somos mulheres num mundo de homens, que somos mães num mundo onde mães são seres santificados e idealizados, que fomos tragadas pelas engrenagens do discurso social desde muito cedo e não escapamos de ocupar esses lugares que não eram nem pensáveis como escolhas em nossas infâncias, muito menos para nossas ancestrais. Esquecer que somos diariamente culpabilizadas por termos sido tragadas para esses lugares discursivos, porque em algum instante ousamos desejar e, não sabendo como, apenas gozamos da violência a qual fomos geradas para aceitar e transmitir. Há muito a ser esquecido. Exercemos nossos esquecimentos até finalmente desaparecer e não lembrar nem mesmo como se desenham palavras, traços, rabiscos. Vez ou outra, quando a voz de uma mulher sobrevivente encontra nossos corpos, por meios de livros, já estamos tão desorientadas de nosso desejo que tudo parece ser inequivocadamente denso e entranhadamento inóspito. Como os fungos, habilidosamente tornamo-nos inconspícuas.

Escrever é esculpir um corpo, tornar-nos quem somos ainda que não exista essência alguma a ser materializada ou reconhecida, apenas o gesto de existência criado forma na condição de uma indeterminação radical. Advir mulher. Como os fungos, que nascem da decomposição de dejetos, dos ambientes fétidos, putrefatos e esquecidos.

É como um grão

Tem que morrer pra germinar

Plantar n’algum lugar

Ressucitar no chão

Morre, nasce trigo

Vive, morre pão.

O sol se põe, os pássaros voam livre para o sul e o mundo continua a ser habitado pelo mal estar da civilização. Uma nota para a sobrevivência de um desejo se escreveu.

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