Insubmissa

Quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Nesta quarta-feira a tarde retomei a atividade física depois de um ano pandêmico. Assim que cheguei no estúdio, me senti incomodada com meu corpo. O estranhamento não era causado apenas pela tatuagem que havia feito dois dias antes (e ainda doía), mas também pelos efeitos de uma espécie de ressaca subjetiva sentida no corpo após os últimos eventos vividos em 2020.

Gostei de ter uma dupla falante. Karina, além de ter uma aparência fitness e coxas enormes, falava bastante, o que me permitia ficar em silêncio e me concentrar nas atividades, nos meus gestos e movimentos. Sinto um gasto intenso de energia na promoção de diálogos vazios característicos em momentos de socialização. Porém, qualquer barulho de voz que produza um ruído de presença humana me acalma. O critério para essa paz é que essa voz não se direcione a mim e nem implique uma demanda a ser respondida. Quanto mais Karina e o professor falavam entre si, mais eu conseguia ficar concentrada no meu corpo. Parece que o som de qualquer vocalização faz borda no meu corpo e institui minha presença, ainda que ausente na função de interlocutora.

Nesse estado de concentração ruidosa, aos poucos fui me desconectando do ambiente e prestando atenção nos meus movimentos. Comecei um exercício em que era preciso colocar um peso de doze quilos em cima da região do ventre e elevar o quadril. Esse movimento de força e dor me remeteu ao filme Pieces of a Woman [Pedaços de uma mulher], especificamente os primeiros vinte minutos, em que apresentam a cena de um parto normal. Pensando no filme e no movimento que executava durante o exercício, notei que o peso que estava sobre meu ventre equivalia exatamente ao peso da minha barriga no final da minha primeira gravidez. Constatei que essa trama — peso, abdômen, força — localizava minha angústia de ser mulher, circunscrita na região do ventre.

A mitologia feminina circula em torno de uma suposta força que emerge no instante do parto. Não há mito que recubra o horror vivido nesse grande ato de despedaçamento humano. Não é belo, tampouco mágico. É cru, visceral, instintual, força de sobrevivência. É o grande e mitológico acontecimento biológico, usado durante séculos como prova factual da natureza animal e seu caráter de verdade originária do ser. No entanto, esse evento constata apenas a submissão feminina à natureza, a demissão da subjetividade de uma mulher em prol da fêmea. Não é mais do que um discurso de poder garantidor da gestação e da reprodução da espécie humana.

Aos dezesseis anos, demitida e roubada do direito de inventar meu ser-mulher, produzi o primeiro pedaço de carne que caiu de meu ventre. Com sorte, nasceu macho. Com seu pedaço de carne a mais, chamado pênis, fecundará com seu sémen quantos ventres desejar para duplicar os pedaços de carne pelo mundo. Um breve alívio se produziu na constatação de que o pedaço caído não era fêmea, cujo ventre demarcaria seu lugar na cadeia de escravidão feminina.

Tão jovem, não compreendi esse evento como um rito de passagem da mitologia biológica. Sem saber o que era ser mulher ou ser homem, não me senti humana. Eu era apenas dor, obediência e incompreensão. Sem saída, me tornei a infamiliaridade com meu corpo, como uma estrangeira em território desconhecido. Vinte e dois anos depois ainda me reconheço a partir desse estranhamento, como pedaços desamarrados de uma mulher. Logo eu, que passei a infância sentada de frente para o espelho esperando a hora da minha transformação! Essa hora nunca chegou e fiquei ali, desatada, desnodada, desnuda.

Fui interrompida em meus pensamentos e divagações por Karina. Ela estava aprendendo um exercício com um bastão pesado que parecia muito com um desses bastões esportivos dos jogos de baseball. Cabia a ela pegar o bastão e girá-lo, movimento que envolvia força e flexibilidade. Diante de sua dificuldade na realização do movimento, brinquei, para incentivá-la:

– Quando o feminismo for legalizado, cenas como essa serão comuns nas ruas da cidade.

Ao terminar de enunciar meu chiste, silenciei. Julguei estar sendo muito incisiva e enfática com minha brincadeira em um espaço no qual eu ainda não conhecia direito as pessoas. Levemente constrangida, voltei a focar no meu desafio pessoal: meu corpo despedaçado de mulher. Ela não riu, nem o professor. Mergulhei numa perlaboração do meu chiste, que estava diretamente relacionado à necessidade de as mulheres andarem armadas para se defender de assédios e violências nas ruas. Talvez não tenham rido por ser um chiste de mal gosto.

Mais tarde, já em casa, notei uma animação não rotineira no meu humor, que rapidamente atribuí aos exercícios físicos. Me senti menos vulnerável e concluí que ser mulher poderia ser uma grande aventura como num filme, que ainda não sei em qual gênero seria catalogado. De toda forma, se decidir por me aventurar na escrita de um roteiro com essa temática, do feminino, suspeito que o filme não será sobre partos. Meu corpo está cansado e ressacado de beber desses mitos. Prefiro a insubmissão.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2021) Insubmissa. Em: www.alineaccioly.com.br

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