Na ponta dos dedos

Deitar-se no leito em busca de tratamento pode ter uma variação infinita de acepções na atualidade. Não deixa de ser curioso constatar que o lugar em que menos deitamos em busca de tratamento, na atualidade, são os consultórios médicos. Esses espaços já foram precursores das narrativas e investigações clínicas. Hoje, é onde tudo parece ter terminado. Nostalgias ilusórias à parte, o fato é que os médicos se multiplicam em especialidades e fragmentam incessantemente nossa noção de unidade corporal (que nunca foi lá grande coisa). 

Grande parte dessa comunidade não se interessa em investir o tempo necessário para as investigações tête-à-tête com os nossos corpos. Eles nos desconhecem através de imagens em altas resoluções, esclarecedoras e precisas o suficiente para transformar os complexos buracos inexplicáveis dos nossos adoecimentos em sintomas universais e medicáveis. Tornamo-nos, para o discurso médico, imagens opacas de ossos, carne, veias e órgãos que funcionam mal. Nos resumimos a corpos programados e previsíveis pelos mapas tão astrológicos como podem ser as leituras do DNA, da neurociência e, não se espantem, até mesmo das estruturas psicanalíticas. Somos siglas. Códigos, CIDs, DSMs, TODs, TDAHs, Tipos 1, 2, 3 de algum espectro transtornado.

Expurgados dos leitos e dos interesses médicos, temos repousado nossos corpos em outros lugares, em busca de tratamento. Não ouso julgar o mérito da qualidade ou da cientificidade de cada um deles. Destaco a busca humana por um lugar de repouso do corpo, que não cessa. Enfatizo a demanda de acolhimento da dor e do sofrimento a ser tratado. 

Pensei tudo isso enquanto estava deitada na maca da minha querida fisioterapeuta. Senti culpa ao deitar em seu leito para ser tratada, porque conhecia bem a precariedade que se apresentava através do meu corpo. Ele estava tomado de emaranhados, nós dignos de quem se enrolou na própria costura da vida. Ela repousou suas mãos na minha pele e só saiu duas horas depois, estendendo o tempo para viabilizar uma leitura geral do corpo. 

Karina lê corpos através de suas pontas de dedos e com a dobra de seus cotovelos.  Ela se interessa, curiosa e preocupada, por cada curva, buraco, rigidez e saliência. Enquanto lê os sinais do corpo, presta atenção a qualquer barulho emitido pela paciente, buscando conformação ou indicação das manifestações de dor. Às vezes, ela narra os acidentes e acontecimentos que o corpo dá a ler, compondo uma história do corpo através da dor que ele conta. Essa modalidade de tratamento busca as cicatrizes, marcas, inflamações e fraturas produzidas no corpo, ao mesmo tempo que as manipula apertando, esticando e massageando. São variadas técnicas manuais que vão desfazendo os nós que se enrijeceram e cristalizaram. 

Tenho a impressão que profissionais como Karina conhecem mais intimamente a história das dores de um corpo do que muitas pessoas que partilham da nossa intimidade na vida cotidiana. Há acontecimentos que não conseguimos encontrar palavras para categorizar, muito menos enunciá-los para alguém. Há histórias que só os nós emaranhados do corpo contam. Mudar a relação com o corpo envolve esse desfazimento de encruzilhadas inventadas pelos nossos passos errantes no caminho. 

Há pessoas que pedem o ano todo por um sinal divino sobre o que devem fazer de suas vidas. Frente a um impasse, não percebem que o corpo é o único Deus que pode responder essas questões. Esse estranho habitat, nada natural, de nossa existência, conta conosco e se manifesta incessantemente à espera de leitura e reconhecimento. É triste reparar que nos mantemos estranhos a nossa língua própria, docilmente alienados por um curto rol de garantias científicas que nos tratam, mas cobram um preço muito caro!  Engolimos, juntos com os remédios, nossa singularidade e tornamo-nos surdos aos gritos invocantes de um corpo relegado ao suporte cerebral.  

Estou no segundo dia da dieta, uma jornada de transição econômica de excessos para a falta. Cada manifestação do meu corpo ganhou, hoje, a leitura atenta e generosa de uma profissional cujos dedinhos, já tortos de tanta leitura e tratamento, auxiliam no encaminhamento da dor que se desfaz. Estamos reabrindo os espaços entupidos de excessos acumulados, para promover o reencontro do corpo com sua língua. Ela é valiosa demais para falar apenas o idioma da dor. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Na ponta dos dedos. Em: www.alineaccioly.com.br

Discover more from Desconcerto de Lalíngua

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading