Aline, você está escrevendo muito! Essa foi a primeira expressão de uma amiga no primeiro café que tomamos em alguns anos. Sorrio, meio sem graça, e peço meu espresso tônica na minha cafeteria favorita da cidade que moro. Ela olha o cardápio e pede um chá gelado. Descubro, depois de anos, que ela não toma café. Em outros tempos, eu comeria uma cheesecake de frutas vermelhas para acompanhar o café. Mas estou de dieta. Fiz minha pequena refeição antes de sair de casa. Meio pão árabe, uma lata de atum e vinte gramas de requeijão light.
Durante nosso encontro, descubro que a minha fome não era de comida, mas de palavras. Temos inúmeras diferenças e o tempo nos levou a caminhos distintos. Mas ela continua investigando o amor e eu continuo traduzindo minhas neuroses com a transmissão em psicanálise.
Entrego meu livro de presente, com uma dedicatória sincera e afetiva. Ela sorri e me conta que deu aula com um texto meu, outro dia. Sinto satisfação e alegria. Nossa conversa vai acontecendo e minha fome vai desaparecendo. A gente fala sobre tudo e sobre nada. Coisas sérias, coisas bobas. Entre expressões taciturnas e risadas leves, um pedaço de quem fomos nessa última década dá-se a ver.
Nossos corpos já não são os mesmos. Ela conta sobre as questões com o peso, advindas do acomodamento em relações que, quando menos percebemos, nos fazem estar no mercado aos domingos fazendo a compra da semana e economia de vida já se tornou uma rotina em torno do trabalhar, comer, dormir. Eu conto de algumas violências que sofri e dos traumas que andam em cicatrização.
O assunto não demora a escoar para as palavras, os textos, a escrita. Ela diz que ando escrevendo muito e assumo essa novidade, publicamente, sem tanto pudor. Sim, ando escrevendo muito. Ela também anda escrevendo. Sua homenagem a Ana Caroline, uma jovem que lésbica que foi terrivelmente assassinada por lesbofobia, foi compartilhada diversas vezes nas redes sociais essa semana.
Ela termina de tomar seu chá antes do meu espresso tônica e precisa ir. Sinto um certo conforto nesse jeito estranho que temos de nos desencontrar, de tempos em tempos. Nós duas sabemos os perigos de institucionalizar relações, inclusive a nossa. A gente se desconfia, mutuamente. Funciona. A gente que aposta na palavra, Aline, não aguenta mais essa história de que a psicanálise será salva pelo rigor científico. Revolução está na moda. Nós partilhamos da desconfiança com salvadores e revolucionários. Quase sempre homens brancos, heteronormativos e colonizadores, com novas roupagens. Rimos. Nunca estivemos tão neoliberais com essa história de revolução, respondo. Seguimos o fio des-com-fiado da palavra. Dela, temos muita fome. Entre a alegria e uma vida interessante, escolhemos textos.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Espresso Tônica. Em: www.alineaccioly.com.br
