Deslize

Cem gramas de salmão cru, cinquenta gramas de arroz branco, couve, manga, cebola roxa, cream cheese, gergelim e cebolinha. Termino meu quinto dia de dieta roubando no jogo. A fome do afeto aflorou no sábado a noite e ela só encontrou saciedade na receita específica com a qual comecei esse texto. Mas o roubo acima confessado vem com um sorriso, reconhecendo ater-se a uma certa lei ordenada pela planilha da dieta feita pelo nutricionista. 

Estou subornando o meu desejo mais antigo, como bem canta Fagner. Escrevendo meu deslize para ele não virar tropeço apagado e ausência de texto. Feito o arranjo, escrevo enquanto espero a comida chegar e devoro essas palavras como se fossem o aperitivo de entrada, à espera do prato principal.

Em outro momento, escreveria uma confissão, auto-prescreveria uma punição para expiar o crime e não teríamos texto algum publicado para contar do segredo que só manteria a voz imperativa que me habita. Essa fome, hoje, não vou saciar. Por isso o ato é nomeado como suborno, porque paga para que o impulso do antigo desejo mortífero se aquiete por mais um dia, fazendo com ele uma promessa que é impossível de pagar. 

Aprendi com Shoshana Felman que um corpo falante se torna especialista em fazer promessas impossíveis. A promessa é o ato em acontecimento no presente, não pressupõe um futuro por vir. Quando Don Juan convida as mulheres para abandonar tudo e viver o amor, toda sua verdade e todo seu desejo impossível habitam aquele instante, convocando o desejo das mulheres a implicar-se também com seus desejos impossíveis, naquele momento. Não se trata do depois, mas desse ponto na linha do tempo em que se cruzam dos atos em direção aos desejos singulares e não semelhantes dos sujeitos envolvidos. A promessa é de que isso vale a pena, seja lá qual destino venham a percorrer esses corpos falantes a posteriori

O suborno do desejo antigo possibilita a abertura mínima de espaço no qual o novo desejo pode transpassar. Logo, a promessa realiza não um ato penal, mas um gesto de escrita com o bico de pena que metaforicamente caligrafa esse texto.

A essa altura já estou rindo. Me lembrei de um meme que brincava com o estilo dos escritores. Provocava-nos a transformar uma frase simples num texto que só poderia ter sido grafado por escritores. Essa habilidade estereotipada é definida pela capacidade de um escritor de transformar um não-acontecimento em uma coreografia orquestrada de forma abissal através da dança das palavras. Da receita inevitável de confissão à brincadeira escriturante com as palavras. 

A comida acabou de chegar. A fome? Passou. A palavra comeu.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Deslize. Em: www.alineaccioly.com.br

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