Da água ao vinho

Começo a perder as contas do dia atual da dieta. É natal e estou entre o sexto e o sétimo dia da regulamentação. Não tenho sentido fome, pelo contrário. Parece que tenho que comer forçadamente na hora marcada, antes mesmo de sentir fome. Muda a relação com o alimento, já que ele parece funcionar como uma espécie de ração e nem todas as comidas parecem ter o gosto bom. O atum tem sido a parte mais difícil.

Vacilo com relação às palavras. Tenho receios diversos que impedem a publicação dos textos para serem devorados por olhos alheios. Desta vez, agi com rapidez nos bons dias e criei e paguei pelo site, de forma que agora não tenho como recuar do espaço que já existe online. Um dos receios é produzir autoficção histérica, como o estilo de Tati Bernardi. Ou de produzir narrativas inicialmente arrebatadoras, como de Natassa em Escute as feras, mas terminar fazendo as pazes com o tamponamento mítico e desperdiçar o esburacamento dolorido e maravilhoso do texto. Ou, pior, nunca superar a mãe, como nas autoficções de Almodóvar. 

Acalmo meu coração com o gesto de escrita. Se a escrita de um texto me faz rir enquanto o escrevo, acredito estar salva desses receios identificatórios. Lembro-me de Helene Cixous e seu convite ao Riso de Medusa. O riso é sinal de que estou no caminho de subverter as marcas trágicas e melodramáticas com as quais escritas de mulheres se tornam apenas mais um texto que escorre sangue, suor e lágrimas. É óbvio que essa literatura é tão necessária quanto as escritas feministas e as militantes. Apenas assumo que não sou interessante nessas modalidades, sempre preferi manter o traço Pessoniano da estrangeirice nata por decisão. 

Me surpreendo com a (talvez) invenção de adjetivação de um nome, pessoniano. Ele soa como as serpentes peçonhentas que habitavam os cabelos de Medusa no delírio paranóico e masculino de auto-importância. Como nos conta Cixous, os homens confundiam as mais variadas línguas estrangeiras, faladas por mulheres, por cobras. Apavorados, voltavam com objetos cortantes para matá-las. A invenção adjetivante também soa como o traço uniano, que Lacan desenvolveu em determinado momento do seu ensino, para nomear um modo de existência do ser falante. O traço passa a servir como uma marca rasurada que orienta o sujeito em sua jornada de desfazimentos e escriturações por vir. É um traço qualquer que ganha o estatuto de uno, porque algo específico desse UM se fixa e itera permitindo invenções a partir dele sem repetir o aprisionamento sintomático das prisões da linguagem e dos discursos. 

Tergiverso. Gostei mesmo foi te pensar que traço pessoniano é uma sintagma inventado para nomear a modo como extraio de cada autor e de cada texto que me comove uma letra para compor minhas línguas serpentes de medusa. Assim, denoto minha filiação a essas casas, mas também minha invenção outra a partir delas. Divago, novamente. Vaguear na língua é um dos prazeres que constantemente tropeço no caminho da escrita.

Todas essas transformações no e do texto me remetem ao livro Língua Nativa, em que mulheres linguistas tentam, por anos e gerações, criar uma língua de mulheres que possa libertá-las do domínio masculino e governamental. Para isso, elas compõem uma língua através da montagem de várias línguas aprendidas através do trato forçado com uma variedade enorme de extraterrestres. Obrigadas, em princípio, a viver subjugadas, aprendendo e traduzindo línguas alienígenas, elas conseguem extrair, dessa subserviência, o roubo de letras. Assim, transmitem para gerações futuras, em segredo, o ato de criação com línguas estrangeiras. O ensejo silencioso é a constituição de uma economia de vida às margens da política masculina, que se estrutura através do aprendizado, do ensino e da transmissão das línguas aliens como forma de subversão e libertação. É como transformar água em vinho, mas não por um milagre religioso. O que importa é a deformação dos sentidos aprisionadores das línguas e como elas permitem a mudança de características da substância.

Ontem não foi um dia bom de dieta. É natal, e comecei bebendo água com limão e comendo exatamente a quantidade certa de carne para o dia, mas não resisti e terminei bebendo três taças de vinho e comendo um pedaço de pudim. Fiquei enjoada. É interessante notar como o nosso corpo se acostuma rápido a rejeitar os excessos. Essa parte me deixou feliz. Meu corpo se transforma mais rápido do que percebo. Ele não vira vinho, porque aqui a transformação é rigorosamente feminina – vira palavra e sem escrita de culpa. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Da água ao vinho. Em: www.alineaccioly.com.br

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