Fiquei alguns dias sem escrever. A rotina mudou na virada de ano e eu, que sou orientada por rituais cotidianos, notei ter me perdido do encaminhamento antes iniciado através da produção textual. Anotei ideias no bloco de notas, mas não tive tempo de retornar.
A lógica de escrita de alguns autores pode ser a mais diversa possível. Tenho lido diários de alguns escritores que admiro, como Franz Kafka e Virginia Woolf. O exercício de escrita diária de cada um deles possui os mais variados pretextos, mas não deixa de conter ausências, desorientações, divagações sem sentido.
Virginia Woolf escreveu diários por quarenta e quatro anos. Começou na adolescencia e só parou até quatro dias antes do suicídio. Há hiatos entre esses escritos, alguns deles até bem longos. Mas ela não deixava de escrever, sempre que possível. Deixou trinta e três cadernos, contendo os diários que escreveu ao longo dos quarenta e quatro anos de registro. Sem contar os livros literários que foram escritos durante o tempo dos diários.
Há um problema editorial na publicação dos diários e textos pequenos de grandes escritores como Virginia Woolf. Alguns deles não encontram acomodação em um gênero literário específico. Alguns editores, por exemplo, consideram problemática a catalogação literária dos registros exatos e verdadeiros da vida de quem escreve. O excesso de verdade não poderia ser considerada como literatura, de forma que os registros diários de grandes escritores não são reconhecidos por muitos em sua dignidade literária, tornando-se um conteúdo degradado à categoria de obra inferior.
No caso específico de Woolf, seu primeiro editor foi seu marido, Leonard. Ele retirava das primeiras publicações de seus diários o que considerava intimidade excessiva, justificando as exclusões como modo de preservação das pessoas citadas nos textos. Quando ele publicou Diário de uma escritora, o texto final estava totalmente recortado e enviesado. Sabemos, no entanto, que foi um desejo de Virginia que seu esposo fosse responsável pela edição de seus textos. Ela escreveu essa demanda em umas das entradas do seu diário, ao mencionar que depois de sua morte, antes de queimar o corpo, Leonard poderia extrair um livrinho dos rabiscos e rascunhos. Logo, ela mesma catalogava seus diários como rabiscos e rascunhos, exercícios de escrita que às vezes geram livros, mas nem sempre.
Quando Virginia morreu, a demanda pela publicação de seus diários era, em princípio, mórbida. Todos queriam saber mais sobre a intimidade de escrita de uma suicida, como se pudessem extrair dos escritos alguma justificativa para o motivo de sua morte. Ainda hoje as pessoas desejam ler os textos investigando possíveis pistas de sua morte. Mas essa não se tornou a última motivação para muitos leitores. Há os curiosos, ávidos em investigar como ela havia se tornado uma escritora tão brilhante. Os escritores buscam seus diários para buscar pistas sobre o estilo, seu modo de criação, sua genialidade literária.
Os momentos de hiância encontrados em sua escrita são justamente os instantes de maior adoecimento da escritora. Quando estava embebida de dor, escrevia de maneira enviesada e com isso seu estilo se tornava um emaranhado intrínseco do seu estado de adoecimento. O maior exemplo desse estilo é o texto Sobre estar doente.
Hoje temos acesso a pelo menos vinte e seis cadernos manuscritos, encadernados pela própria autora. O período engloba seus trinta e seis anos de idade até sua morte. Seus diários são registros de absolutamente tudo que atravessava seu corpo, desde o preço do ovo à reflexões sociais e políticas. Há registro de suas leituras, comentários sobre pessoas e eventos, suas inseguranças, dores, questionamentos… enfim, é uma escrita sem fim. Alguns pesquisadores afirmam que seus diários oferecem um retrato do modo como ela se construiu escritora e mulher. Logo, não se trata de uma única versão de Virginia, mas do registro de sua constante mudança. Ela mesma afirma, em um dos registros no diário, que o exercício de escrita diária ajudou a construção de seu estilo de escrita. Haveria uma noção de identidade narrativa em construção e movimentação ao longo das quatro décadas de diário.
No entanto, é um comentário de Leonard acerca dos diários que mais me chamou atenção. Ele afirmou que nos escritos da esposa não havia nem um pingo de verdade. Esse comentário foi acolhido por diversos editores atuais da escritora, para concluir que seus diários poderiam ser catalogados como autobiografias, mas sobretudo como escrita autoficcional. O chamado regime da sinceridade, no exercício diário de escrita, poderia ser nada mais do que um sinal de elaboração textual que transforma dados da vida cotidiana em um procedimento de transformação dos pretextos de um escrito. Em algum momento, não conseguimos mais encontrar o limite que mostra com clareza o instante em que um texto deixou de ser uma verdade cotidiana e passou a ser uma ficção de verdade. Esse espaço, configurado como uma borda, como o litoral, nos deixa apenas entrever um intervalo temporal entre outros textos que foram escritos concomitantemente a algumas entradas em diários, demonstrando sutilmente, sem revelar, o entrecruzamento do tempo de escrita em que um diário passou de diário da vida à literatura.
Segundo pesquisadores, as escritas de diários de grandes autores estão inseridas nesse paradoxo fundamental. É porque travaram guerras secretas contra suas loucuras, seus vícios, suas autodestruições, que fizeram uso de seus conflitos como forma de travessia das ruínas pessoais, sugando todo traço de criatividade que brota. Dessa forma, suas subjetividades e estilos literários surgem entrelaçados com seus desmoronamentos, como forma de resistência, de sobrevivência, quase sempre falhas e fracassadas no nível pessoal e, inversamente, quase sempre bem sucedidas no nível literário. Por isso, não poderíamos reduzi-las a uma mera expressão individual ou pura ficção.
O que autores como Woolf e Kafka provocam é um esfumaçamento das fronteiras de gênero literário. É ficção, é documental, e não é, ao mesmo tempo. Essas formas híbridas lembram a teoria produzida pela feminista interseccional Gloria Anzaldua. A autora cunhou a expressão borderlands – la frontera para nomear o espaço entre línguas que um escritor consegue habitar e reconstruir no texto. Trata-se de um espaço de borda em que uma novidade acontece na escrita entre línguas. Podemos observar essa proposição com mais facilidade em todas as modalidades de escritas de si, que podem ser autobiografias, diários, memórias, etc. Não se trata mais de separar o verossímil e o veraz no conteúdo final. O importante é o gesto de ruptura com uma noção fechada de verdade e de ficção, que permanece, por estilo, inverificável.
É porque o terreno de escrita acontece nesse espaço de borda incessantemente sem definição que escritores como Woolf e Kafka caminharam. Como escreve Virgínia, nada é mais fascinante do que enxergar a verdade que habita atrás dessas imensas fachadas de ficção – se a vida é de fato real, e se a ficção é de fato fictícia. Ana Carolina Mesquita, tradutora de uma das versões dos diários de Woolf no Brasil pela Editora Nós, afirma que a ficção aparece em seus diários como um meio de passagem, uma travessia entre a representação e o real: sacolejante as vezes; mas, noutras, sutil como um sopro de ar.
Por aqui, no Desconcerto de lalíngua, seguimos Entretexos. Replico o exercício da escrita diária já tão praticado por escritores admiráveis, como quem busca desconcertar-se na ficção da vida para encontrar a meia verdade possível de um estilo. Trata-se, sobretudo, de produzir com as palavras o eco de uma voz literária que expressa um exercício de observação constante do mundo, dos outros e de quem escreve. Assim, saímos do registro confessional tão relacionado ao estilo religioso, para um experimento de escrita que observa tudo o tempo todo. Ao final, talvez possamos compreender o traço de estilo indissociável entre variedades escritas entre gêneros.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Entretextos. Em: www.alineaccioly.com.br
