Indigestão

Cerca de dezenove horas do dia vinte e quatro de dezembro de dois mil e vinte e três comecei a sentir enjoo. Eu não havia ingerido carboidratos nem gorduras, apenas uma quantidade superior de proteínas ao longo do dia. Afinal, era natal e eu levei uma peça de picanha para a ceia. Estava bebendo água com gás ao longo do dia e havia experimentado uma taça de vinho que minha madrasta comprou para nós. Achei bacana vê-la bebendo algo que realmente gostava depois de quase vinte anos sem partilhar dos momentos regados a cervejas que ela não gosta. Assim, a indigestão que comecei a sentir parecia vir de outro lugar. 

A primeira frase indigesta que atravessou meus ouvidos, enquanto eu comia, foi uma piada contada por uma familiar. Ela só tem amigos gays e foi assim desde que me lembro. Só mais tarde que fui compreender a diferença entre a cultura gay e a cultura lésbica. Apesar de partilhamos do mesmo espaço na sigla LGBT(+) e também dos mesmos guetos na cidade, há um enorme abismo entre essas realidades e formas de viver o preconceito. 

Não podemos esquecer que muitos homens gays foram culturalmente criados a partir dos privilégios discursivos masculinos e, por isso, carregam uma misoginia que passa despercebida por muitos. A comunidade G fica em uma borda entre conjuntos. Pertencem a uma minoria excluída por sua relação com a feminilidade e, por isso, experimentam as violências sociais ao assumir tais traços rejeitados pelo patriarcado; Pertencem, ainda, ao conjunto denominado como Homens, lugar discursivo que mantém certas vantagens e passabilidades entre outros grupos minoritários. Nessa intersecção, é comum a replicação de certas violências aprendidas a outros grupos de minorias agrupadas por outras características. 

Não me cabe, nesse texto, apresentar um estudo profundo sobre essa querela, muito menos militar favorecendo o ódio das pequenas diferenças entre coletivos. Pontuo essa diferença e marco a problemática misógina presente no discurso gay. Há uma generalização de um traço G em diversas piadas que tem um gosto muito amargo para quem também vive nos escombros da misoginia e da lesbofobia. 

Depois desse breve parênteses, volto a cena da minha mãe no natal. Rindo, ela contou de um vídeo em que um senhor gay respondia a uma pergunta de um seguidor no instagram. Qual é seu maior medo? Ele respondeu: tropeçar e cair de cara numa vagina. Ela riu, todos riram. Lembrei de um sonho recorrente, nomeado por mim como sonho de castração. Nos sonhos desse tipo, vivo o pavor dos meus dentes caírem. Todos eles caem e fico bangela. Lembrei desse sonho, porque existe uma fantasia masculina da vagina dentada. Lembrei, ainda, de um conhecido que toda vez que terminava de transar com uma mulher, checava o pênis para ver se ele estava inteiro. Era um ritual. Ele não gostava muito de vaginas, apesar de se intitular um amante de mulheres. Não demorou muito a confidenciar que preferia as mulheres trans, com pênis. Em alguns momentos de ódio com as mulheres de sua vida, resmungava que deveriam existir mulheres de dois cús. Seriam mais úteis aos homens. 

Algumas vezes, depois de beber, ele esquecia que eu era mulher. Um dia, quando bebemos juntos ele entrou no banheiro e comentou que eu havia esquecido de baixar a tampa da privada. Tive que lembrá-lo: eu não mijo em pé. Ele ficou com as bochechas vermelhas, sem graça. Lembrou-se, naquele instante, que eu não tinha um penis. 

Não consigo descrever nesse texto o rol de mal estar que mulheres acumulam diante dessas brincadeiras, piadas, esquecimentos vividos na convivência com o discurso misógino. Muitas mulheres não sabem o que fazer ao observar alguns homens checando seus pênis depois do coito com uma vagina, para se certificar que seus órgãos estão inteiros e não foram dentados. Lembro de um outro amigo que gostava de transar com mulheres sem dentes, porque tinha muito prazer sem medo de ser mordido pela sua boca no sexo oral. 

Passei a vida sonhando que meus dentes caiam. Uma interpretação selvagem poderia afirmar que esse é o terror da perda do pênis, baseada em uma das teorias infantis muito comuns para explicar a diferença dos órgãos genitais entre sexos. As meninas já foram portadores de um pênis, mas o teriam perdido. Ou, ainda, mantinham-se à espera de seu crescimento. Prefiro acreditar que nosso pavor, desde cedo, se liga à percepção do ódio explícito por nossa existência como diferença. Essa rejeição cria uma demanda silenciosa que nos impele a nos tornarmos buracos transpassáveis que possam ser invadidos sem nenhuma adversidade, da boca ao anus. 

Recentemente, sonhei o que parece ter sido o último sonho com esse tipo de temor. Dessa última vez, ao cair, os dentes ressoavam barulhos musicais, semelhantes aos sons de teclas de piano quando tocadas. O que se revela com a queda é que os dentes não eram cortantes, mas crocantes e musicais. Que descoberta! De cortantes a crocantes bastou o deslizamento da letra R da direita para esquerda e a substituição da letra T pela letra C. Ah, os cortes que a linguagem nos permite… croc. (Risos). De toda forma, meus devaneios me desviaram da resposta que eu poderia dar a piada recém feita naquela ceia de natal. Há um desconhecimento e uma transmissão simultânea nesse tipo de compartilhamento social.

A ideia misógina e lesbofóbica de que uma vagina é um continente pavoroso foi normalizada entre homens de toda sorte, incluindo o conjunto G. Diante de uma vagina, é preciso fugir, odiar, enojar-se. Desse ódio, nem os homens trans se salvam. Portadores de vagina formam um conjunto perigoso, detestável. Basta um tropeço perto desse povo e o terror está em cena. Indigestão. 

A segunda violência que se liga a esta descrita acima situa-se na replicação enunciativa de tal discurso por possuidoras de vagina, que tornam-se surdas às violências desses discursos para sustentar um arranjo de inclusão nesse grupo, traduzindo medo por segurança. O cálculo que já escutei de amigas mulheres é o seguinte: se um homem tem horror a vaginas, logo não haverá perigo de uma mulher ser violentada. Assim, estamos seguras. Muitas ainda se orientam por esse cálculo, permanecendo assim, afetivamente disponíveis a homens que desprezam e têm horror a versões mitológicas do feminino. Que grande equívoco!

Tenho amados amigos gays a vida toda. Por isso, temos discutido a lesbofobia que surge imperceptivelmente nos discursos. Recentemente, fomos a um bar lésbico, mas não conseguimos ficar lá por muitas horas. Acabamos indo parar na rua mais gay de São Paulo. Só no dia seguinte me dei conta da facilidade com que nós mulheres somos acostumadas a habitar espaços que não nos favorecem, para evitar conflitos. 

Seja no meio heteronormativo, seja nos espaços gays padrão, mulheres lésbicas  transitam por esses não-lugares a vida toda, buscando umas às outras discretamente. Quando os espaços L são constituídos e não acolhem necessariamente qualquer público, o fato de não serem feitos para acomodar homens de toda sorte se torna um grande incômodo social no arco-íris. Não se trata necessariamente de uma proibição, mas do funcionamento de uma lógica que provoca desconforto ao padrão discursivo em vigência. E sabemos como homens não toleram o que não entendem por muito tempo. 

Além disso, há uma paz que pode ser traduzida como entediante. O caos opera de outra forma. Não há indigestão. As bocas não são devoradoras, ainda que sedentas. As línguas falam em múltiplos idiomas. A compreensão e a troca se assentam em outro discurso e o corpo comunica para além dos orifícios da boca, vagina e anus. A sutileza ganha espaço, e para quem não está acostumada com ela, estranha-se na sua própria alienação a um modo de relação. Lembro de um amigo, incomodado, porque se percebeu colocando demais a mão na garçonete. Ele é um homem gay, ela é uma mulher trans. A questão não era a sexualização proposital dos corpos, nesse caso, mas foi um instante em que ele se leu repetindo um comportamento que ele mesmo odeia quando vai em baladas gays: o modo como as pessoas tocam o tempo todo nos corpos umas das outras sem autorização, com naturalidade. 

Naquele espaço entre mulheres cis e trans lésbicas, ele conseguiu ler a impregnância de um modo de relação com os corpos que ele mesmo detesta. Mas foi apenas quando experimentou a sutileza de ser estrangeiro em um espaço que conseguiu ler o incômodo em seus atos. Fomos embora logo depois desse acontecimento. Tenho certeza que um movimento não foi conectado ao ato seguinte, por ele. Terminamos a noite em um local onde a norma é beber demais, tocar os corpos dos desconhecidos e depois sair violentamente sem pagar. Indigestão. Ressaca garantida. Piada pronta para o próximo natal. 

Passei o dia vinte e cinco sozinha. Não falei com ninguém por vinte e quatro horas. Fiz um voto de silêncio para todas as terríveis palavras que atravessam nossos poros e nos causam indigestão. Especialmente das palavras advindas de pessoas que amamos, pois estas parecem rasgar não apenas nossos corpos-escuta-dores, mas também as gargantas de quem as vocaliza. São vozes estandartes da terrível ocupação do discurso de ódio às mulheres que fere a todes nós.  

Quanto a vagina, vale lembrar que trata-se apenas de uma cavidade enervada que pode ter diversas funções, a depender da decisão do corpo a qual ela faz parte. Trata-se, sobretudo, de um buraco que nos lembra como nossas teorias infantis sobre o corpo e a sexualidade nunca são totalmente encerradas. Afinal, uma vagina é um dos pontos do corpo em que ele pode virar do avesso, mudando a noção espacial e topológica que temos de um corpo.

Ao contrário das nossas ilusões apaziguadoras, o corpo não se separa entre dentro e fora. O corpo é, no mínimo, um corte topológico moebiano. E é exatamente disso que toda uma espécie se mantém apavorada. Ainda partilhamos do medo de sermos engolidos pela loucura enigmática da existência, ainda que sejamos feitos apenas de substâncias como sangue, ossos e carne. Por que, afinal, a única substância que te transforma em algo a mais que não um organismo vivo como as amebas é a palavra (e o modo como você decide habitá-la). Cada corpo é apenas mais um buraco negro que funda um universo inteiro. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Indigestão. Em: www.alineaccioly.com.br

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