São só três frases e vem acompanhadas de um peso incrível! Essa frase foi enunciada pelo ator Michael J. Fox no documentário Still. Em inglês o jogo de sentido do título do documentário brinca com a questão do movimento, central na doença de Parkinson, mas também na vida que o ator levava antes dela.
A oração foi proferida pelo ator após a leitura de um trecho do seu livro que descrevia a morte de seu pai. No entanto, ela cairia muito bem em outro documentário, intitulado Great photo, lovely life. Neste último, Amanda Mustard apresenta sua jornada de revelação de um segredo familiar. A jornalita apresenta sua investigação acerca das acusações de abuso infantil e da omissão da própria família em torno de um avó pedófilo que está prestes a morrer. Ela decide quebrar o silêncio de três gerações e busca dar voz às vítimas do avô, entre elas sua mãe e sua irmã (além de tantas outras crianças que passaram pelo seu consultório médico).
A palavra de ordem do nosso tempo convoca uma retomada do controle das narrativas às vítimas de acontecimentos traumáticos. Antes que tal empreitada torne-se mais um imperativo categórico que termine por roubar, mais uma vez, a liberdade no uso da palavra, a invocação tem algo de interessante. Trata-se de um convite para que o sujeito abrace o peso das palavras não ditas pelo caminho de sua vida ao invés de apenas arrastá-las em fugas eternas e sem saída. Ao tentar traduzir o evento em narrativas e promover conexões com semelhantes, é possível transformar dor e isolamento em laço social. É a mutação dos apagamentos, das lacunas provocadas por não ditos, em momentos responsáveis por mudanças radicais no curso de uma caminhada.
Porém, há uma questão que me incomoda nessa proposição. Como manejar a linha tênue entre uma enunciação de palavras que produzem novas saídas para os sujeitos e entre as enunciações que capturam e cristalizam o sujeito em ditos que serão apenas usufruídos pela roda do discurso? Como discernir as demandas que repetem os mesmos aprisionamentos que elas denunciam? Nesse sentido, o documentário de Fox é o testemunho de um homem que se vê aprisionado pela falência de seu organismo, mas que decide seguir existindo através das palavras como seu único exercício de liberdade que ainda lhe resta. A palavra pesa, mas alivia ao ser enunciada, acalmando até mesmo um corpo que, por alguns segundos, se esquece de seu desmoronamento.
No caso de Amanda, o peso das palavras parece não ter encontrado saídas para ela ou sua família. Há uma contradição, porque ela conquista o desejo de travessia das palavras de muitas vítimas. Estas ganham a chance de falar, esbravejar, chorar e denunciar para, finalmente, inventar outras saídas para esse trauma. No entanto, no foro íntimo, Amanda, sua irmã e sua mãe só encontram uma solução para o desarranjo entre gerações através do distanciamento. Elas não conseguem manejar o desconforto que resta entre elas, porque mesmo após a denúncia do avô, torna-se evidente que um abusador só conquista tantas vítimas, por tantos anos e sem punição legal, porque há uma rede de mulheres que sustenta em silêncio seus vícios.
Diante da participação ativa da esposa do pedófilo, avó de Amanda, e da participação indireta de sua mãe no silenciamento do abuso de sua irmã, essas três mulheres parecem não encontrar saída para tal testemunho. Nesse caso, o peso da palavra joga uma pá de cal na história de uma família. Em busca da revelação do horror de advir, como família, de um avô criminoso, Amanda termina por denunciar as testemunhas ativas e ocultas organizadas pelo núcleo familiar, constituídas pela avó e pela própria mãe.
Assim, compreendemos que para falar e abraçar o peso das palavras ditas torna-se indissociável manejar alguma perda. Quando tomamos coragem de dizer as palavras que nos dão frio na barriga, um peso cai do corpo para o mundo. Esse desapego é sinal da transformação de uma economia de vida que nos faz acumuladoras de dores, aprisionadas por segredos e não ditos que deixam inabitável um corpo que deveria ser, antes de tudo, nosso lar.
Hoje, essas foram as palavras que coloquei na balança, depois de passar meus primeiros dez dias de dieta. É muito bom transformar o peso delas na pulverização de letras que podem ser consumidas como aperitivos por vocês. Até a próxima refeição!
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Peso da palavra. Em: www.alineaccioly.com.br
