Objetos de valor

No conjunto nomeado como pobre, há uma vasta subcategoria lógica. Estas são divididas entre agrupamentos e reagrupamentos dos mais inimagináveis, ainda que a lógica de divisão econômica estabelecida pelas classes sociais abastadas sigam empurrando as mais diferentes pessoas para um mesmo conjunto de pertencimento baseado em seu poder econômico. 

Passei a infância na periferia e logo compreendi que há um modo particular, nessa realidade, de valoração dos objetos. Criamos maneiras de nos diferenciarmos e nem sempre elas são as mais interessantes. Terminamos por replicar a lógica dos degraus da classe social, sonhando com uma travessia de pertencimento que é sempre idealizada como existência possível apenas em outro lugar. 

 Voltando às nossas divisões internas, a regra básica é que se somos todos considerados pobres, na baixada fluminense, instauramos variações entre pobrezas e esse discernimento é regulado pelo uso ou não de determinados objetos, por exemplo. Lembrei disso enquanto lia um dos registros do diário de Virginia Woolf. No ano de mil novecentos e quinze, a autora comentou sobre a presença de cortinas em casas do subúrbio inglês. Nas casas alugadas, não se encontra uma janela sem cortina. Há uma rivalidade entre vizinhos acerca dos tipos de cortina que possuem. Há as de seda amarela, as de renda, as blackout. 

Enquanto os vizinhos ficam ocupados com essa competição silenciosa do valor atribuído aos tipos de cortina que possuem, não notam o fedor de carne e de seres humanos que a falta de ventilação produz nessas casas. Ter cortinas é um sinal de respeitabilidade, porque elas demarcam o litoral entre o público e o privado, mas, sobretudo, porque escondem os podres individuais de cada família dentro de suas casas.

O comentário de Woolf carrega certo tom de desprezo mediante essa economia de vida em torno dos objetos e seus valores. Sua escrita me lembrou algo que tem sido muito falado hoje em dia, sobre os afetos como a vergonha, a culpa, o ódio das nossas origens não nobres. Quando morei em São Paulo, passei muitos anos escutando de colegas histórias sobre suas descendências européias. Advinda de uma família nordestina, resultado de uma mistura histórica dos tempos de colonização do Brasil, eu não parecia ter histórias de orgulho para contar. Venho da mistura de portugueses com indígenas e africanos escravizados. Essa sujeira histórica, cheia de violências de toda sorte, causa todo tipo de vergonha, medo e ódio. Sobretudo, raiva, pelo desconhecimento que nos é provocado, por não possuímos maneiras de pesquisar com facilidade a miscigenação que explicaria melhor a origem de periferias e da pobreza no Brasil. 

  Terminamos por odiarmo-nos, na periferia. Primeiro, porque somos semelhantes. Independente das mais variadas cortinas nas janelas de nossas casas, somos todos pobres e miseráveis, escondidos atrás de pedaços de pano tão finos e tão rasgáveis quanto nossas peles. Quando estamos muito próximos, dentro dos ônibus lotados que se dirigem ao centro para o trabalho, podemos encarar de perto nossos rostos e perceber com detalhe os buracos, as cicatrizes, o cheiro incrustado de sujeiras mal lavadas durante os banhos rápidos para economia de água e energia. Os desodorantes baratos exalam odores inesquecíveis, pois se misturam ao cheiro de gordura e de suor ao qual deveriam esconder, exaladas através de roupas mal lavadas para economizar sabão em pó e amaciante. Ser pobre é o inferno do acontecimento. Me estranha como ainda enlouquecemos mais do que assassinamos uns aos outros. A colonização deu certo, afinal. Tornamo-nos dóceis. Cordeirinhos do senhor.

Seguimos nos odiando, posteriormente, porque nossas diferenças se tornam sinais de nossa silenciosa competição. Investimos em nossas carreiras e estudos sonhando em nos salvar, mas não coletivamente. O gosto parece mais doce se formos reconhecidos por algum mérito individual. Alçar a burguesia tem gosto de licor digestivo, que se saboreia junto com algum julgamento moral de uma parte da população que fracassou devido a seu pouco esforço pessoal. Desacreditamos nessa estrutura, mas silenciosamente nos dirigimos a ela todas as manhãs, sonhando com a salvação pelo mérito e pelo reconhecido de classe no final de uma trajetória de vida. 

Nos odiamos, por último, porque partilhamos o não sentido dessa vida miserável aos sábados no bar e aos domingos no culto, instantes em que nos tornamos novamente uma comunidade ilusória por sermos restos, dejetos de uma sociedade cujos valores já deixaram de ser humanos a um bom tempo. 

Quando saí da baixada fluminense e fui parar na capital de São Paulo, me perguntava, entre as crianças burguesas, como elas sabiam que eu não pertencia àquele espaço. Inocente, prestava atenção nos diferentes modelos de cortina, como havia aprendido pela sub-hierarquia de classes sociais na periferia. Eu mal sabia que os tecidos de nossas roupas, suas etiquetas e fábricas, bem como as marcas de lápis e números variados de cores nos denunciavam. A variedade era infinitamente superior às que eu havia aprendido a catalogar na periferia. Por isso, eu não era convidada para as rodinhas de meninas burguesas nos clubinhos da hora do lanche. Era evidente que até meu uniforme era do modelo antigo, doado por uma vizinha cuja filha mais velha já tinha os novos modelos. 

Meu lanche, que era um saquinho de waffer muito disputado no intervalo da escola em Duque de Caxias, não tinha valor algum em São paulo. Aquele objeto não provocava qualquer tipo de cócegas ou atenção em ninguém. Naquele novo espaço, aprendi que nos odiamos na classe média, por sermos seres absolutamente estranhos uns aos outros novamente agrupados numa mesma classe. O mal estar que eu produzia nas minhas colegas de sala situava-se no desprazer da revelação de universos até então inexistentes para elas, nos obrigando a uma incômoda e necessária reorganização de tudo que sabíamos sobre nossos pequenos universos infantis até aquele momento. 

Mas era preciso voltar todas as tardes e enfrentar aquelas quatro horas e meia de sala de aula, de estranhamento, de deslocamento, de exercício de docilização do ódio que nos consumia através dos diferentes valores daqueles objetos e como eles determinavam, tão cedo, nossos destinos. Os novos ricos não usavam mais cortinas. As persianas residenciais tomaram conta das casas burguesas, por um período, por serem mais práticas, higiênicas e maleáveis. Elas ainda não conseguiam esconder o fedor de carne e de ser humano, que seguia firme, incrustado, co-habitando as essências francesas importadas na última viagem à Europa.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Objetos de valor. Em: www.alineaccioly.com.br

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