Ausência

Tudo que fiz, nos primeiros dias de dois mil e vinte e quatro, foi repousar algumas ideias no papel. Elas voaram enquanto eu andava pela rua com meus amigos.

É ano novo e não consegui oferecer habitações textuais para esses sopros de ideias, pois estava ocupada em abrigar, com afeto, minhas queridas visitas. Amar dispensa energia, a mesma necessária para escrever.

Estou escrevendo o diário da dieta a pouquíssimo tempo, menos de um mês. No entanto, a impressão é de que já se passou o dobro do tempo. Talvez porque os textos escritos já ultrapassam trinta páginas. A velocidade de depósito das palavras no papel, o tempo de publicação e o momento de leitura não são os mesmos, definitivamente.

Esse é o primeiro texto escrito de dois mil e vinte e quatro. Não é o primeiro a ser publicado. Em homenagem a nascitura de um novo ano e um novo texto, pensei em qual seria o grito acompanhado dessas palavras recém nascidas.

Na nossa cultura, consideramos sinal de saúde o grito imediato do bebê ao ser jorrado no mundo por um outro corpo. O grito, nessa perspectiva, denota que a passagem de ar aconteceu com sucesso, substituindo a realidade do mergulho placentário.

Se essa noção de saúde advém da substituição de uma materialidade líquida por outra imaterial consistência da passagem de ar, posso traduzir essa primeira marca suposta de saúde como o grito ensurdecedor da transformação de um espaço inaugural de vida através de uma ausência. É a fundação de um corpo majoritariamente transpassado de oxigênio.

Deve ser por isso que até hoje eu não tenho muita afinidade com o mar (nem mesmo nas fases de água do super Mario). Nasci de cesariana e quase morri sentada na barriga da minha mãe. Sou uma quase-afogada, primeiro na placenta materna, depois nas diversas vezes que quase me afoguei no mar, durante a infância e a vida adulta. O quase faz toda diferença.

Logo, se entrei na vida quase sufocada, meu grito veio abafado, tornando-se, na verdade, um esforço mecânico enorme para sugar o ar do mundo. Tenho esse trejeito até hoje. Constantemente preciso me concentrar para sugar o ar do mundo. Isso também acontece com a escrita, porque sigo equivocando-me na escrita da palavra mãe. Quando vou revisar o texto, noto que sempre termino por grafar mar. E, normalmente, a-mar me afoga.

Todo esse desvio foi um caminho para escrever o primeiro respiro de dois mil e vinte e quatro. Meu apelido é Al e tenho percebido como uma letra muda tudo. Volto ao exercício de transformar a-mar em al-mar.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Ausência. Em: www.alineaccioly.com.br

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