Devoradora de estilos

Nós mulheres somos roubadas do reconhecimento dos nossos primeiros encontros amorosos. Minha família sempre leu, arbitrariamente, a suposição de amor que eu tive por rapazes, desde o jardim de infância. Não sabiam ler o texto que estava em acontecimento. Eu já sabia da necessidade de performar, aos olhos sociais, o interesse por rapazes, então dançava com eles, mandava neles, tocava eles para lá e pra cá. Repetia o que via acontecer nas novelas. 

Confesso que alguns homens, cujas performances lembravam algo de feminino, me interrogaram. Mas até hoje confunde-se muito a introspecção dos rapazes com uma versão alternativa do universo intitulado como masculino. De toda forma, o texto que mantinha-se não lido pelo meu entorno, cego à minha língua estrangeira, escrevia sobre meus amores e minhas paixões que passavam ao largo dos homens. 

Me apaixonei intensamente por todas as minhas amigas, sem reconhecer o nome do sentimento enquanto tomava forma. Eu sentia com o corpo. Era algo sutil, como uma vontade enorme de rir com elas, de me ocupar de qualquer atividade para estar próxima a elas. No entanto, esse ainda não era o texto principal que movimentava meus afetos. Me apaixonei e aprendi a amar primeiro o texto, os estilos e manejos com os afetos que cada autor realizava. Era com eles que eu acordava, com quem passava o dia, com quem dormia. Era por eles que roubava livros em bibliotecas, porque nunca conseguia devolvê-los.

Soube dessa minha queda desde criança, através das minhas primeiras paixões por alguns escritores. Amei Lygia Bojunga, Pedro Bandeira, dentre tantos autores da nossa literatura brasileira. Adolescente, ampliei o território e amei Fernando Pessoa, Roland Barthes, Millôr Fernandes, Agatha Christie. Me tornei uma mocinha que amava demais a dança das letras e registrava compulsivamente qualquer pensamento, sentimento ou acontecimento diário. Todo esse universo erótico não era legível para os não habitantes desse universo. Apenas recentemente consegui localizar esse traço do meu desejo em palavras.

Tornei-me, com o passar dos anos, uma devoradora de estilos. Leio cada marca autoral com uma voracidade que me causa espanto. A motivação surge de uma busca incessante pelo aspecto irreplicável que é cernido através da questão de estilo. Podem até copiar a forma, o conteúdo, performar o arranjo. Mas certo uso da letra escancara, para um leitor ávido, astuto e interessado, a filiação de um trejeito literário. 

Por isso, foi desorientador me dar conta, já adulta, do engano que cometi ao perceber-me totalmente interessada pela letra de uma pessoa que conheci no universo acadêmico. Devastador foi desfigurar, através da intimidade que só uma constelação de textos de um mesmo autor deixa entrever, que aquelas palavras não eram de quem as grafava. Tratava-se de uma colagem fragmentária de pedaços alheios.  

Flagrei-me, envergonhada, com minha própria fantasia. Desejava tanto amar pessoas de carne e osso (e não apenas os fantásticos corpos falantes escrituradores, almas vivas de corpos já mortos da carne), que não desconfiei da profusão impossível de estilos entretextos. Me apaixonei por uma profusão de letras roubadas de outras pessoas. Investigando um pouco mais, discretamente, descobri ter me apaixonado por estilos femininos copiados. 

Quando foi revelada a farsa (e o encontro escancarado com minha sedenta fantasia), sabia estar diante de um copista e não de um escritor. Talvez, nem copista. Muito menos um articulador de palavras. As palavras de uma querida, conhecedora do meu ardor legente, ressoam incessantemente nos meus ouvidos: Aline, você não percebeu, pela escrita do sujeito? Bom, tenho tentado elaborar uma resposta que me satisfaça diante desse incômodo. Que acalme algo em mim. 

Os textos iniciais dos quais tive acesso não eram do sujeito. Eram dela. Delas. Algumas ex estudiosas da temática. Quando terminava suas relações com mulheres, saia levando algum objeto delas. Depois da passagem por várias, já não tinha mais nada de seu e não lembrava mais o que era de quem. Resumia-se a uma colagem de suas escritas, de suas investigações, aos quais intercalava com cópias de alguns textos fundamentais de intelectuais brasileiros. 

Eu não podia acreditar no meu engano com as palavras roubadas.  O horror despertou um certo fascínio, como a história do ladrão de estilos, que conseguia vender quadros falsos porque havia aprendido a replicar o gesto de estilo que dava o selo de veracidade às obras artísticas. O ladrão de estilo enganava, especialmente, os leitores especialistas dos artistas. Afinal, foram esses que validaram e habilitaram as obras para venda. Eles reconheceram o estilo original onde havia replicação. No meu caso, a farsa não alçava a categoria dessa história clássica, mas me senti tão besta quanto os especialistas equivocados na leitura. Tanto que só consegui sair do transe fantasmático quando as palavras roubadas foram as minhas. 

Tem um tipo de plágio que se realiza disfarçadamente através de ideias que parecem brotar da memória de quem escreve. É como se um sujeito mergulhasse ostensivamente em uma temática, ou em um autor e, ao dormir, apagasse todo seu encontro com o estilo do autor. Ao acordar, desperta com grandes ideias que parecem ter brotado durante a noite. Ao escrevê-las, age como se fosse falado por elas, sem notar-se performar uma escrita mediúnica. No entanto, ao ler o texto que acabou de ser escrito, o sujeito reconhece já ter encontrado com aquele texto em outro lugar, mas decide seguir a farsa. A decisão pelo desmentido transforma a paráfrase em direitos autorais. 

A grande sacada do sujeito, nesse caso, foi perceber que o roubo de textos ainda não lidos impede o re-empossamento. Que coisa mais inteligente é essa de roubar palavras e ideias de quem tem vergonha de escrever e publicar as suas. No entanto, a pedra no meio do caminho é o tropeço no estilo. É o estilo da costura de palavras e o gesto de escrita que promove um ruído nesse disfarce. Certas palavras só podem ser ditas de certas maneiras por certas pessoas.  

O modo de escrever sobre o rio Tejo é de Pessoa, ainda que o rio Tejo seja visto e escrito por todos os portugueses. Os atos de investigação de Hercule Poirot só podem ser escritos por Christie, ainda que investigações maravilhosas sejam escritas por outros escritores. A bolsa amarela de Bojunga é a única que engorda, ainda que existam tratados literários sobre bolsas, esconderijos e textos. Certas expressões se tornam inesquecíveis na letra de alguns autores. 

Um leitor minimamente interessado e astuto reconhece de longe esses traços quando eles aparecem. É assim que algo de um engodo se revela. Mas só se a gente não tiver se enrolado demais na paixão fantasmática pelos novelos textuais alheios. Afinal, até as lacunas e os buracos no corpo dos textos gritam que os excessos cegam até leitores mais avisados de Saramago. O discurso amoroso, afinal, não equivale a invenção do amor. Como Barthes, temos que configurar letra a letra. Corpo a corpo. Fazer caso do acaso. Até quando se trata de um tropeço com a própria ilusão amorosa. Nem o amor pelo texto nos salva do encontro com o impossível.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Devoradora de estilos. Em: www.alineaccioly.com.br

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