Lafouquerie

Só a suspensão de algum senso de realidade permite que alguém escreva. Outra suspensão é necessária para publicar. Escrever é um risco, publicar é o velório do enterro dos ossos. Com sorte, as publixações, como dizia Lacan, serão ao menos roídas sedentamente pelos cães. Eu sei, tudo parece um tanto trágico. Todo brasileiro tem uma veia SBT novela mexicana, comigo não seria diferente. Pode ser também a ascendência italiana que todos nós supomos que temos depois de tantas novelas de imigrantes na globo.

Não sei o que demorou mais pra se tornar inevitável nessa minha dieta da escrita: eu citando Lacan no diário da dieta (olha só, demorou doze dias, se minhas contas estiverem certas) ou finalmente o surgimento da fome avassaladora do que não tem nome. Vocês provavelmente devem estar cansadas de ler esse pedaço da Clarice, tão roubada pelo discurso de autoajuda instagramável. Por isso, vou pular pra sequência, que quase ninguém cita. 

E talvez meu desejo seja de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar. Talvez essa ânsia seja uma idéia e nada mais Porém, os raros instantes que às vezes consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como o canto de um órgão — esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é sede de todo o meu ser e não apenas uma ideia? Além do mais, a ideia é a verdade! Grito-me. São raros os instantes. (…) Qualquer coisa agitava-se em mim e era certamente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente minha alma também. Nesse instante eu estava verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E eu não me sentia desamparada.

(Perto do Coração Selvagem)

Agonizo. Há um grito apertado no peito, preso. Há um desassossego. Há um não lugar. Há uma não familiaridade com as coisas. Há solidão. Há desejo de nem sei o que. Escrever é um surto. Um surto mudo, às vezes. Porque a palavra só ganha vida quando vocalizada. E ando ficando bastante em silêncio. Vou desistir desse texto. Ele precisa mudar. Não nasceu pra esse desespero. Nasceu para encontrar uma saída. Desaguar o aperto no peito, desatar esse nó da garganta. Desisto do texto. Mas ele segue vivo para transformar-se. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Lafouquerie. Em: www.alineaccioly.com.br

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