Sorumbática

Meu avô paterno, Byron, não era lorde nem praticante das línguas eruditas. Ele foi um homem cheio de defeitos, alguns até considerado criminosos nos dias atuais. Mas ele foi a referência cultural intelectualizada que mais me marcou na infância. Apesar de ser uma espécie de contador e passar o dia datilografando números e cálculos, esse homem comum era um apreciador de sons e sabores que desde cedo eu sabia não serem nada comuns à periferia onde moravamos. 

No centro de Duque de Caxias, baixada fluminense, num calor de quarenta graus, ressoava, da cobertura classe média baixa de um apartamento sem elevador, toda sorte de jazz e blues. Nas estantes, os clássicos da literatura americana e europeia, encapadas com plástico, eram ordenados alfabeticamente. Entre livros, jazz e algumas cervejas, Byron falava com seus filhos e netos como se fossem súditos, aprendizes. Usava termos que me faziam constantemente buscar o dicionário para aprender a catalogar palavras e seus usos. Energúmeno e sorumbático estavam entre elas. 

Quando essa palavra foi usada por Pitty, esses dias, parece que vi fantasma. Ela e meu avô partilham do bom gosto musical, mas também dividem alguns preconceitos verborrágicos em um tom professoral. Separados pelo tempo. Como meu avô, Pitty parece não gostar de ser a última a saber sobre os eventos importantes da cena musical pop em território brasileiro. Beyonce deu um pulo em Salvador e eu ganhei uma aula de história, em áudio, do meu melhor amigo gay, sobre o evento. Não fui a última a saber, mas não escondi meu desconhecimento da causa. Calei e estudei cada detalhe historicizado na linha do tempo contada pelo meu amigo. Ao final, considerei tudo muito importante, para além dos atos comuns a cenas pop.

Pitty, no entanto, reduziu tudo ao fato de não ter sido convidada, reclamando da falta de tempo que a artista pop produziu para que os convidados (em sua maioria pessoas negras) pudessem estar presentes no local. Não acredito que ela estava chapada de zolpidem, como tentam justificar nas redes sociais. Meu avô nunca soube o que é zolpidem, mas era especialista nesse tipo de resposta diante de acontecimentos as quais ele havia sido desconsiderado. Byron, como Pitty, tem um ipsilone no primeiro nome. Ambos carregam, também, o estilo racista de raciocinar. O racismo estrutural de Pitty berra aos ouvidos de uma geração de fãs que segue comprando seus ingressos para shows idênticos, perdoando sua paralisia criativa na feitura de suas músicas e álbuns. 

Pitty me incomoda, no entanto, pelo uso que faz das palavras. Gasta tempo tirando da cova termos não praticados pela juventude contemporânea e gasta-os promovendo ranço a uma vocabulário que já não tem tantos usuários. Talvez devesse nos presentear com novas músicas inesquecíveis, nisso ela já foi boa. 

Foi assim que descobri que meu avô não vive só na memória de nossa família. Afinal, Byron e Pitty não compartilham apenas do nome diferentão e da estrutura fracassada. Compartilham o gosto pelo uso de palavras difíceis para serem, descaradamente, racistas em seus sonhos de burguesia. Parece que é tudo programado mesmo Pitty. E eu achando que você tinha se libertado. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sorumbática. Em: www.alineaccioly.com.br

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