Litoral

Ano passado comprei um minicurso da Power Paola sobre a escrita de diários de viagem. Na impossibilidade de viajar, a cartunista ensina como transformar um dia comum em uma viagem interessante. Acostumada com o registro de memórias gráficas, ela configura a viagem como um mergulho do corpo, do olhar e dos sentidos no mundo. Podemos investigar as superfícies e profundidades do universo se estivermos em Paris, no Rio de Janeiro ou no mercadinho da esquina de casa. Nunca fiz o curso. Ficou lá pago, à espera de ser assistido. 

Lembrei das milhares de vezes que fui a médicos e ao sair, com o diagnóstico e a receita de remédios, nunca passei na farmácia para comprá-los. Tudo que eu precisava era do olhar do médico sob meu corpo de modo investigativo, o nome da suspeita do diagnóstico e o encaminhamento de tratamento. Eu ansiava por qualquer viagem investigativa sobre meu corpo, um território não explorado, deserto. O cuidado com o corpo eu mesma me encarregava de fazer, posteriormente, a minha maneira. 

Minha relação com os médicos mudou. Hoje vou menos aos seus consultórios, mas levo mais a sério as pílulas que eles prescrevem. Tomo todas, ainda que seja para descobrir que elas resolvem bem menos do que espero. Porém, não desisto de explorar meu deserto particular. Isso implica, às vezes, comprar cursos de escritores que respeito apenas para catalogar seus estilos de escrita. Deixo esses grãos de estilo reservados na minha biblioteca pessoal para uma consulta pontual, caso necessário. No entanto, sigo inventando meu jeitinho de viajar entre as palavras. 

Descobri cedo que os livros são minha maior viagem e meu caminho de cura. Mas andava desconfiada, nos últimos meses, que essas seriam apenas justificativas para produzir longos períodos de isolamento. Então, decidi viajar com meus amigos. Dez dias de estrada, praia e diversão. Durante a viagem, algumas ideias de escrita transbordaram. Rapidamente elas eram registradas no meu pequeno moleskine, na esperança de serem semeadas posteriormente, ainda que já soubéssemos que não seriam plantadas no final daquele dia. 

O moleskine ficou cheio de anotações. Estou de volta no meu aconchego, mas três dias se passaram e ainda não consegui trabalhar com aquelas notas. Por outro lado, os textos que deixei por escrever antes da viagem e as ideias que fluem dos livros que estou lendo seguem correndo seu curso e encontrando espaço no fluxo entre palavras. Interrogação. Não consigo elaborar uma questão a ser respondida, mas há algum estranho incômodo presente. 

No final da viagem, uma amiga mencionou ter percebido que escrevi muito durante a viagem. Fiquei surpresa com sua observação, mas acho que temos diferentes concepções de escrita. Um dia, apenas um dia, escrevi pela manhã e à tarde a resenha de um livro que terminei de ler durante uma viagem, para não perder o fio. Esbocei o rascunho de uma autoficção que despertou após uma noite de sono. Mas essa não é a modalidade de escrita que estou endereçando no exercício diário da dieta.

É verdade, anotei muitas coisas para serem trabalhadas posteriormente. Mas notas são apenas listas de desejos não trabalhados que facilmente se perdem ao não encontrar morada. Talvez o princípio do desconforto venha deste ponto. Durante a viagem, abandonei a dieta. Não consegui escrever ao menos um texto por dia. Não, amiga, não escrevi muito nessa viagem. Não tenho tanta certeza que são as viagens e movimentações em diferentes espaços do mundo que adubam meu processo criativo. Quando encontro uma palavra arrebatadora e pululante no texto de uma autora que já está morta a mais de três décadas, parece que esta palavra viaja no tempo e aduba muito mais o terreno escriturador onde habito do que qualquer belo litoral brasileiro. Para cada um, seu litoral. O meu é desértico.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Litoral. Em: www.alineaccioly.com.br

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