Alerta de gatilho: esse texto contém tema de violência sexual.
Dor de cabeça. Desorientação. Confusão. Não consigo abrir o olho, parece pesar muito. Desisto. Tento sentir meu corpo. Dor. Já não tenho certeza se vem da cabeça. Ela está virada pra direita. Concluo que estou deitada de bruços. Estranho… Não deito de bruços a anos por causa de uma pressão no peito. Sinto minha blusa e meu sutiã. Capotei vestida. Tento abrir o olho. As pálpebras pesam e a vista embaça. Não sei onde estou. Não escuto nada, os ouvidos estão entupidos. Tento abrir a boca e não sai som. Cansaço. Sinto meu corpo balançando. Meu rosto esfrega no lençol. Sinto mais forte o balanço do corpo. Percebo que há ritmo no movimento. Sinto a dor com mais intensidade e começo a ter taquicardia. Parece que meus pés estão em contato com o chão. Estou de meia e sinto o aperto do tênis. Sinto minha calça abaixo dos joelhos. A intensidade da dor aumenta. Me apavoro. Sinto medo. Desespero. Muito desespero. Tento mexer meus braços e levantar o corpo. O esforço desentope meus ouvidos. Escuto o barulho da cama arranhada no chão, pra frente e para trás, batendo na parede. Escuto os gemidos de um homem. Sinto dor e tenho certeza agora que ela vem das nádegas. Terror. Consigo gritar abafado. Shhhh! Com toda a vontade de viver que habita meu corpo vergado em dor e desespero, consigo me levantar. Caio. Pareço bêbada, mas estou tonta, cambaleante. Sinto o gosto de vinho francês na boca, misturado com cheiro e gosto de vômito. Olho pra ele e tento entender. Nem bebi, penso rápido. Experimentei o vinho francês que ele me pediu insistentemente. Como vim parar aqui? O pensamento acelera na velocidade do desespero, mas o corpo não acompanha, cambaleante. Disjunção. Grito. Lanço o peso do meu corpo pra frente, procurando uma saída. Ele me segura, sussurrando coisas que não me lembro. Está bêbado. Continuo gritando o som baixo e abafado que meus pulmões se esforçam em produzir. Me arrasto cambaleante para o portão da garagem. Grito na direção dos vizinhos. Shhhh! Ele abre o portão.
Entro no carro. Acho que vou morrer no meio do caminho. Vou bater o carro num poste e nunca mais acordar. Ninguém vai saber o motivo. Na autópsia vão descobrir os sinais do ocorrido. Acordo no outro dia e há vômitos no quarto, na sala, entupindo a pia da cozinha. É o dia do meu aniversário de dez anos de casamento. Mas preciso arrumar minha mudança, o caminhão chega às 7h. Entro no chuveiro pelada, deito no chão. Não tenho forças no corpo pra ficar em pé. Sentada, vejo escorrer vômitos, xixi, cocô e sangue. Disjunção. Deito no chão esperando a coragem chegar. Me sinto morta.
Minha mãe chega. Percebe o estado da casa e não pergunta muita coisa. Sabe que estou me separando e não ando bem. Digo a ela que não consigo fazer nada, peço ajuda na mudança. Ela briga comigo um pouco, como quem não entende porque estou de ressaca no dia da mudança. Meu pai chega, abre a porta e fecha rapidamente. Não foi a primeira vez que me viu deitada pelada na sarjeta do chuveiro. Peço a ele pra tomar cuidado com minhas coisas. Lembro que tem maconha e dinheiro escondido na minha gaveta do quarto.
Acordo no apartamento novo. Não lembro como cheguei lá. Eles vão embora, eu agradeço. Fico na sarjeta, junto com todas as caixas de mudança espalhadas pela casa e com o caos que minha vida havia se transformado. Tenho vergonha. Sinto dor. Não consigo chorar. Não tenho controle algum dos esfíncteres. Sai mijo, cocô e sangue. Ele manda mensagem. Me perdoa, não vi que você não estava acordada. Não me perturbe. Dormindo? Desmaiada, você quer dizer. Me deixe em paz. Fecho os olhos. Não há paz. Escuto a voz reverberando em cada poro do meu corpo. Quem vocês pensa que é? Todo mundo nessa cidade já sabe das suas histórias. Você acha que pode fazer o que quer? Vocês três não vão me roubar a MT. Você não gosta de mulheres, seria desperdício demais. Abro os olhos. Acho que morri. O que você tava fazendo na casa do dele naquela noite? Ele atende crianças, ninguém vai acreditar. Sangue, suor, lágrimas. Diarreia. Vômito. Desmanche. Shhhh!
Open your eyes, David. O céu do cerrado não é Vanila. See you in another life, when we are both cats. Abro os olhos.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Disjunção. Em: www.alineaccioly.com.br
