Há coisas que não devem ser narradas. Por isso, é preciso inventar um jeito de escrevê-las. Passaram algumas horas desde que finalizei a escrita de Disjunção. Levei sete anos para conseguir vomitar aquelas palavras. Rascunhos não faltaram. Mas a versão publicada transbordou enquanto eu caminhava no parque, como se as palavras tivessem entrado em comunhão a cada passo que eu dava. Cada ponto um respiro.
Mas não só. Uma amiga andou lendo meus textos e me enviou uma mensagem com uma interpretação muito cirúrgica sobre a minha divisão entre a linguagem e a língua do corpo. No instante em que terminei de ler suas considerações, fui atravessada por um rebuliço. Cultivei o desarranjo incomodado por uns dias e ele encontrou morada no meio da caminhada.
Sim, ainda é autoficção, caso você esteja se perguntando. E sim, são verdades impossíveis traduzidas como Mentiras sinceras. Preciso contar com o empréstimo da sua leitura generosa para continuar com a coragem. A coragem sempre tem gosto de guarda-chuva pra mim.
Escrever todos os dias não é fácil. Mudar a economia de existência de um corpo leva tempo e muito trabalho. Preciso inventar palavras que ainda não existem e formas que ainda não subverti para não abandonar tudo que ainda precisa habitar as palavras que só meu corpo pode dizer.
Nesse momento, me sinto como o fantasma de A ghost story. Jogando com o tempo e suas camadas, o filme retrata o drama de um fantasma preso no enigma de uma letra inacessível de sua mulher. Ela tinha o hábito de deixar pequenos bilhetes escondidos nas casas que já havia morado, para guardar o traço que aquele espaço-tempo-casa escreveu em sua vida. O fantasma, morto acidental e precocemente, fica preso naquela casa, naquela história dos dois. Ela segue seu caminho. Ele, sem corpo, sem vida e sem sentido, fica preso naquele enquadramento, vagando errantemente pelas novas vidas e histórias que atravessam aquela casa. Nessa passagem cruel do tempo onde tudo desmorona, ele assiste à deformação do universo inteiro e não cessa de tentar decifrar o que fora pra ela enquanto esteve vivo.
Há um exato momento, no filme, em que ele finalmente consegue pegar o papelzinho escrito no vão de madeira e ler o que estava escrito. Imediatamente, a consistência que inflava o pano se esvazia e cai. Inexistência. Fim.
Sinto que, por muito tempo, fui uma espécie de fantasma errante e desconsolado que não encontrava seu lugar, como escreveu Mario Levrero em O Romance luminoso. Ao ler a Carta Roubada do conto de Edgar Allan Poe, quer dizer, a carta depositava e esquecida no vão impossível de ser tocado, desapareço como o fantasma da película. Na perspectiva do fantasma, o esvaziamento de sua existência assombrosa, silenciosa e vagante data o fim de um conflito que não cessou nem após o enterro de seu corpo. No meu caso, a fantasia cai porque passei a habitar o texto e as palavras do bilhete que eu mesma havia escrito.
Lamento ter vivido tanto tempo angustiada, temendo os imprevistos e desconhecidos. Mas não me desculpo por ter conseguido transformar vinho francês podre em admiráveis doses di’ssoluções para sobreviver. Sempre preferi os vinhos argentinos e chilenos, aliás. São Malbecs encorpados e aveludados. E agradeço a pessoas de coragem que nos dão chave de leitura para o que não entendemos. Foi com I may destroy you, por exemplo, que algumas lacunas se conectaram.
Reconquistei meu direito à solidão sem medo e arco com o valor do meu exercício diário de liberdade. Dissolver os nós dos emaranhados que sufocam o corpo é sempre melhor do que ficar disjuntamente atada aos pavores insuportáveis do que fomos para alguém. Quando o fantasma passa dessa para outra, acendemos uma vela em sua homenagem e dormimos para acordar para o sonho. O despertar do desejo orienta o abandono constante da intragável realidade cotidiana que não parece mais como filmes de fantasmas. Talvez estejamos mais próximos do terror distópico pós-apocalíptico cheio de zumbis ou de uma ficção científica com inteligências artificiais que vão extinguir a humanidade.
Por aqui, torço para que vocês estejam lendo o bilhete. Mas não o da personagem do filme, nem mesmo o de Poe. Aquele, que vocês esconderam em algum lugar êxtimo e que, por algum estranho motivo, impele vocês a voltarem às minhas palavras todo dia para encontrar alguma coisa que não sabemos. Talvez seja o testemunho de que línguas estrangeiras existem. Sua língua estrangeira está vagando por aí, em alguma dobra do seu corpo, à sua espera também.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Fantasma. Em: www.alineaccioly.com.br
