Moinho

Hoje acordei com dezesseis anos. Devia começar a escrever o roteiro “De repente quarenta e um”. Sorrio. Escrever alguns textos impossíveis de serem escritos por outras pessoas tem feito uma espécie de reconciliação com meus passos errantes pela vida. Não tenho apenas abraçado as palavras que escrevo, mas elas têm abraçado um corpo que já sofreu demais com os acidentes e tropeços na caminhada da vida. A cada texto, fico mais leve. Se me autorizo a imposturas é porque já não tenho medo ou vergonha alguma de minhas razões julgadas como inadequadas. Ah, o alívio de ter me autorizado a brincar de trançar com a lógica, com a topologia e com a literatura…

 Acordar com dezesseis tem referência com certas sensações que ficam guardadas em momentos únicos da vida. Não é apenas sobre o lugar ou as pessoas que participaram do instante em questão, mas toda a sutileza de detalhes que compõem um conjunto de experiências únicas e não replicáveis para o resto da vida. É o cheiro de chuva na madeira de um galpão; o modo como a música e a risada das pessoas se tornam um barulho caótico que entra pela primeira vez no corpo de uma jovem; a sensação de usar a calça da amiga que a mãe proíbe, dando um sentido absolutamente único e inesquecível para sensação fria que aquele pano produz na pele; é o transbordamento de afetos numa domingueira enorme e cheia de adolescentes na mesma faixa etária. 

Substancialmente, ficaram apenas as músicas. Graças ao Ronaldo Gasparian (e outros), as playlists estão replicadas no Spotify. Não há outro registro daquela época, visto que não tínhamos celulares, máquinas fotográficas ou redes sociais. O ano era mil novecentos e noventa e oito. As lembranças ficaram depositadas na memória de quem as viveu e são revividas quando alguns djs da época lançam as playlists daqueles noites. No meu caso, nem as amigas ficaram. Nada daquele ano ficou. Absolutamente nada e ninguém. 

Mal sabia que aquele seria o ano em que eu experimentaria um princípio de liberdade roubada que seria interrompida pelos imperativos sociais sob um corpo dito feminino. As violências de gênero e classe social ficaram cada vez mais fortes e por nenhuma exclusividade da minha história. Só fui mais uma a adolescer e encorpar. Os corpos nomeados como femininos são roubados da condição de verbo e substantivo, resumindo-se ao adjetivo. A guerra começa na estrutura de linguagem, mas passa às relações sociais e morre na economia sufocante de corpos. A certa altura, o desejo se restringe à necessidade de voltar para casa viva todos os dias ou produzir a menor intensidade possível de neuroses de guerra. Impossível. 

O que afirmamos como impossível quase nunca é ainda o impossível. Se pôde ser lido e dito como impossível, já deformou sua estrutura e tornou-se possível, ao menos no campo da palavra. Tenho repetido isso para um amigo e para mim mesma, todas as manhãs. Aprendi isso com minha analista, a senhorinha que mudou minha vida e meu modo de ler o mundo pra sempre. Carregarei sua letra estruturante no corpo que insiste em se escrever, a cada nova escrituração subversiva das formas necessárias, mas também sufocantes e limitantes. Do quase afogamento almar, navegando sem a-fogar.

Desculpe pelo enorme parênteses no caminho do texto. Toda vez que me flagro escrevendo algo nomeado como impossível, penso no Tsu e na Nina. Esses viraram os referentes das minhas economias de gozo e desejo. Acabei de escrever sobre o impossível no caminho de constituição de um corpo quando ele é lido, a partir de seus caracteres, como feminino. Imediatamente confronto esses modos de existir, sempre em conflito, buscando tratados de coexistência. 

Não é bem uma escolha, posto que o território de linguagem já é a guerra, o conflito. Descobri tardiamente que as armas que eu tinha, os livros e as palavras, não me serviam pra nada na hora do front da batalha. Meu corpo ficou à mercê de quase tudo. E os acidentes e tropeços foram muitos. Afoguei mais do que achava dar conta. Contabilizei toda dor talhada e cicatrizada. Talvez porque mesmo sabendo que algo era amedrontador naquela parte do caminho, eu não tenha me acovardado. Nunca foi uma escolha. As que ousam são as que mais apanham, na comissão de frente. Ousar não é nem a palavra correta, já que a liberdade para ser quem se é sem medo de morrer é apenas o mínimo.

No Moinho Santo Antônio eu vivi algumas noites alegres, despretensiosas e inseguras. Daquele moinho eu tenho saudade. Daquela versão autoficcional de mim que estava em plena montagem, a qual eu dedicava horas de estudo. Estava aprendendo a costurar estilos, confeccionar segundas peles e trançar bordas maleáveis para deixar o corpo-suporte respirar. Mas foi outro moinho que me pegou.  O de uma vida pré-determinada para mulheres, que eu não conseguiria escapar. 

Hoje acordei com dezesseis anos, mas tenho quarenta e um. Quarenta e um. A liberdade de corpos ditos femininos só chega quando estes se tornam desnecessários e/ou descartáveis para o funcionamento da máquina. Ufa! Sempre tive em mente que a Al-forria só aconteceria aos quarenta e isso acalmou os ânimos na passagem dos trinta. Nunca foi falta de desejo, mas aceitei o infinito de uma guerra que nunca foi minha e decidi me exilar no isolamento do meu território. Uma ex namorada nunca me perdoou pelo que ela chamou de covardia ou qualquer outro nome que ela deu a nossa história para suas amigas. Converso com ela nos meus sonhos desde então. É que quanto mais eu nadava, menos ar eu tinha e maior ficava a profundidade do mar. Fugi para o meu deserto particular e lá fiquei exilada todos esses anos. 

Curioso. Agora que meu pulmão falha, com alvéolos enrijecidos pós covid, agora que meu quadril desencaixa, depois de muitos abortos e recusas à violência, agora que meus ombros doem de tanto carregar crianças com um braço para escrever com o outro, agora que o erotismo substituiu o sexual, agora que estou fora do peso, agora que não consigo correr dezesseis quilômetros, agora que eu não quero ser mais nada nas cifras pre-determinada da guerra de gêneros, agora que decido abandonar a referência ao sistema de linguagem determinado pela lógica sexo-gênero, agora… agora dissido. Agora. A melhor hora da minha vida ainda não aconteceu. É a dissidência. Que seja sempre o agora de cada momento. Como aos dezesseis. Como agora. Que tenha início a peregrinação. 

 (Esse texto é um abraço)

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Moinho. Em: www.alineaccioly.com.br

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