Execução

Tem sido muito interessante a experiência diária da dieta. A cada dia e a cada texto descubro algo novo, mesmo depois de uma vida dedicada a ler e escrever literatura. No entanto, ontem quase perdi o tempo de publicação do texto do dia. Já são trinta e quatro dias ininterruptos escrevendo e publixando. Me perguntei, pela primeira vez desde o dia um, se não é um exagero escrever e publicar todos os dias. Dormi com essa inquietação e acordei com o texto de Luís Borges na cabeça. 

Em O milagre secreto, Borges conta o drama particular do judeu Jaromir Hladik no tempo em que foi prisioneiro do Terceiro Reich. Anos antes, ele havia traduzido um livro que serviu como prova cabal de sua ligação com a causa judaica, resultando em sua condenação à morte por seu encorajamento aos outros. A denúncia contra o renomado tradutor aconteceu em dezenove de março de mil novecentos e trinta e nove. Sua condenação foi fixada para o dia vinte de março, às nove da manhã. 

Aterrorizado, Hladik começou a pensar na morte por fuzilamento. Tentou se convencer que a morte era temível, independente da forma. Passou a madrugada insone, fantasiando sobre o momento da morte. Diante das mais variadas formas imaginárias de sua execução, refletia como a realidade nunca correspondia aos cálculos e previsões. Deu-se conta da lógica perversa, ao inferir um universo de detalhes que não servem para impedir o inevitável. 

Jaromir tinha mais de quarenta anos e estava escrevendo um livro antes de sua prisão. Ele era escritor e havia passado a vida dedicado à literatura. No entanto, todo livro que ousou publicar gerava nele uma sensação de arrependimento. Ele desdenhava de suas elaborações lógico-filosóficas. Como poeta, escreveu uma antologia que foi bem acolhida pelos leitores, o que deixou nele uma confusão de sentimentos. Supôs que encontraria redenção na escrita de um drama. No entanto, flagrou-se emaranhado na trama, fazendo da escrita um ato interminável. O conto de Borges sobre o drama de Hladik é inteiramente costurado com camadas de sonhos, devaneios e cálculos fantasiosos, tecendo os caminhos que o aterrorizado escritor percorreu, insone, no pequeno espaço de tempo de espera da sua execução. 

Na fatídica manhã marcada, Hladik estava pronto para ser executado. No entanto, os soldados precisavam esperar a hora marcada, às nove horas. Todos olhavam para o relógio, inquietos. Oito e quarenta. Hladik aguardava de costas para o pelotão armado e, ao fitar a parede aguardando o disparo, sonhou com a possibilidade de não morrer sem antes terminar seu livro. De todos os desesperos que poderia sentir, sua angústia maior situava-se na eternização de um drama não finalizado.

Nesse momento, todo o universo físico em seu entorno foi paralisado. Primeiro, achou que estava louco. Depois acreditou estar morto. Por último, concluiu que havia detido o tempo, com sucesso. Não sentia fadiga ou vertigem. Deus havia concedido seu pedido. Hladik teria um ano a mais para encerrar sua última obra. Não havia papel, caneta ou qualquer outro recurso para a escrita. Foi com sua memória que minuciosamente se aventurou no texto. Agora, sabendo tratar-se de sua última escrita, omitiu, abreviou, amplificou, em certos casos, optou pela versão primitiva. Pôs fim a seu drama. Imediatamente, gritou e os disparos derrubaram seu corpo. Estava morto às exatas nove horas e dois minutos. 

Há um mito em torno dos minutos que precedem a morte. Para alguns, é como um filme que passa mostrando cenas sobre a vida. Quais cenas? A cada um, seu gênero cinematográfico. O conto de Borges trabalha com esse imaginário coletivo. Diante da morte, Hladik se dá conta que nem sonhos, nem devaneios nem cálculos mudam a rota marcada do encontro com a morte. Com essa certeza diante de seus olhos, deseja ter terminado de escrever a obra mais importante de sua vida. A beira do abismo, há pressa para a execução. Não da morte, pois sobre essa não temos controle. Há pressa para a execução do único ato do qual somos mandantes – a escrita do nosso drama singular. É a única forma que podemos dar ao encontro com o inevitável. 

No tempo de urgência, caem toda sorte de regras literárias e gramaticais e cabe no corpo do texto apenas a decisão e o estilo. A versão primitiva estava lá à espera de ser articulada e finalizada. No caso de Hladik, infelizmente, seu ato decisório chega tarde demais e ele só pôde realizar toda essa maratona em seu pensamento. Ele morreu com o livro pronto, mas a melhor obra de sua vida pôde apenas ser lida por ele. 

O exercício diário de escrita que tenho sustentado, nos últimos trinta e quatro dias, vem de uma inquietude que habita, costumeiramente, muitos escritores. É como se não fosse bem uma escolha, mas a emergência de um ato inescapável. Amigos e familiares costumam se impressionar com minha capacidade de trabalhar, ler, escrever, ver filmes, fazer exercício, dentre outras atividades. Escuto suas considerações, mas no silêncio do meu corpo, não vejo nada extraordinário. São apenas decisões e estilo. Cada um sabe como gasta seu tempo de vida enquanto aguarda o beijo da morte. 

Minha inquietude é abissal. Se não escrevo, sou povoada de pensamentos que podem transbordar e me afogar. Escrever é como transformar um imenso e assustador mar em rios diversos que correm o mundo, escoando para lugares distantes, construindo territórios, irrigando zonas desertas e inabitadas.

No entanto, tenho me aterrorizado com a possibilidade de morrer e deixar todos esses textos inexplorados no meu computador, nos meus cadernos, nas minhas notas. Como afirmei em Moinho, agora que abracei a mortalidade do meu corpo é que o terror do silêncio das palavras mais me assusta. É como se eu entendesse Hladik parado, de costas, olhando para a parede depois de uma noite insone. Espero ser condenada por encorajar os outros com minhas escritas e traduções. Mas não é por isso que escrevo. Escrevo porque sou inquieta. Porque ao meu lado, na parede de execução, vejo vocês esperando a hora da morte para desaparecer junto com todos os sonhos que foram deixados para depois, com medo das imprecisões e imposturas que eles exigem para serem realizados. 

Um adendo: nos minutos que precedem sua morte, entre a condenação e a execução, Hladik dilata o tempo, fazendo dos minutos finais um ano inteiro. Nessa dilação temporal, muito se escreve porque é preciso parar de hesitar, de vacilar com o desejo. A escrita fica à espera de ser transliterada, como um esboço primitivo de um conjunto de letras que foi abandonado. Não à toa, dissertações de mestrado e teses de doutorado saem no espaço de três a seis meses da dilação do prazo final.

Em O Romance luminoso, a narrativa do livro é constituída, em grande parte, pelo tempo que o escritor precisou para enfrentar o desejo inescapável de escrever uma experiência impossível de ser contada. Parece que ele enrola e não escreve nada, só diárias bobagens. É que os caminhos vagantes da escrita de um desejo não equivalem aos vacilos desviantes da escrita. Pelo contrário, é a própria escrita tomando corpo.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Execução. Em: www.alineaccioly.com.br

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