Ontem assisti o documentário sobre a história de criação da música We are the world. De todos os comentários que eu poderia fazer, o ponto de torção aconteceu, pra mim, no depoimento final de Lionel Richie a respeito da noção de Casa. “Enjoy coming home because there is gonna come a time when you can’t come home. The house will be there but the people in the house won’t be there”. Em uma tradução livre, seria algo como: Aproveite seu retorno ao lar, porque haverá um tempo em que você não poderá voltar. A casa ainda estará lá, mas as pessoas da casa não estarão mais.
Fazia tempo que não encontrava uma definição simples e precisa para tantos afetos que ficam sem nome. Essa frase escreve, entre tantas definições, a noção da saudade impossível de sanar. Define o retorno incessante de nossas buscas por um lugar, por um certo modo de amar e ser amado, pela escrita de uma marca que depois retorna sempre como vazio. Conta da nostalgia incessante de pessoas que não conseguem recriar outras sensações de familiaridade com as pessoas, com os lugares e com as coisas. Descreve como ficamos para sempre presos num momento, que se torna um ideal a ser alcançado, mas insistirá como um fantasma do passado. Define, sobretudo, o incessante movimento de gozo que vai nos colocar sempre a pagar qualquer preço para tentar reviver uma sensação impossível de ser replicada. É a escrita da evanescência da uma experiência de amor, impossível de ser dilatada e replicada, a posteriori.
No documentário, por um esforço de Quincy Jones, Lionel Richie e Michael Jackson, muitos artistas foram reunidos em uma madrugada para gravar e documentar a invenção de uma música a favor da luta contra a fome na África. O impressionante, no entanto, foi colocar tantos artistas dentro de uma sala e manejar seus egos enormes, em prol de uma causa humanitária. Foi interessante notar as dificuldades de juntar, num único conjunto, letras que já faziam parte de uma mesma lógica, mas não conseguiam ser escritas num mesmo espaço. Assim, numa única noite apenas, aquele instante escreveu a composição de um laço entre todas aquelas pessoas que duraria apenas naquele espaço-tempo.
Nosso desejo de comunidade se escreve em uma lógica bem diferente da noção de sociedade. Em apenas algumas horas, pessoas das mais diversas possíveis conseguiram emprestar suas vozes para uma única causa. Essa causa os permite experimentar o mais próximo do que seria a noção de lar como um espaço de pertencimento. Múltiplas e distintas vozes compõem uma harmonia que é feita da coreografia do estilo musical de cada um. A união não se realiza através do conceito de família, ou de religião, nem mesmo de artistas. Sujeitos, cuja causa se cruza num mesmo ponto, por um instante, enlaçam suas vozes que, a partir daquele instante, ecoarão para sempre o som de um desejo de casa. Um lar que não existe, mas insiste em se fazer sonho cantado, ensejando existir ao menos nas vozes de quem o canta.
Estamos sempre tentado voltar a viver uma experiência que quase sempre, no instante que foi vivida, não foi aproveitada ao máximo, justamente porque era apenas o presente em acontecimento. Não aprendemos com a experiência – cuja mensagem seria: aproveite sempre seu instante presente, porque ele não se repetirá. E extraímos apenas o ideal perdido: porque não aproveitei como deveria? Que lança, por sua vez, o cálculo futuro-anterior: Agora farei de tudo para replicar aquele passado para que dessa vez, possa aproveitar. Está escrita a fantasia de realização do impossível, amarrando passado, presente e futuro numa repetição incessante da frustração, da privação e, sobretudo, da castração.
Logo, a mensagem do pai de Lionel foi possível ressoar no corpo do filho muitos anos depois, quando ele compreendeu que o presente é sempre o melhor instante de nossas vidas. Justamente porque ele nunca se repetirá. Estará para sempre perdido. E essa é sua beleza.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Casa. Em: www.alineaccioly.com.br
