Quando adolescente, assisti o filme Lua de fel e fiquei extremamente excitada com aquela mulher dançarina que ousou fazer xixi no rosto de um homem paraplégico. O filme não é bem isso, mas foi o que se compôs de fantasia na minha cabeça jovem. Comecei a namorar um rapaz, meses depois, e pedi para ele assistir o filme. Queria testar se ele sentia o mesmo, ensejando uma reencenação entre nós dois. Ao final do filme ele estava enojado e não queria repetir a cena de forma alguma comigo. Além disso, ele vinha descobrindo ser um rapaz homossexual, então hoje eu só consigo de rir de toda sorte de equívocos que vivemos juntos naquele instante.
Muitos anos depois, já adulta, achei uma pessoa para repetir a cena comigo. Tardiamente, descobri que a graça não estava em nada daquilo, mas na revelação do meu desejo, não admitido, por mulheres livres.
Venho estudando a noção de corpo falante há alguns anos, mas foi apenas dois anos atrás que descobri a origem do termo na escrita de Shoshana Felman. Ela é uma escritora maravilhosa que trocou algumas figurinhas com Lacan nos anos setenta. No entanto, depois de tantos anos, o nome dela foi apagado da invenção do termo, tornando-se uma palavra comum atrelada à teoria lacaniana. Ah, os apagamentos!
Eis que que produzo um sonho do qual não consigo reproduzir em palavras, porque ele é cheio de enigmas. Assim que acordo, fico apenas com a lembrança de uma palavra que, no sonho, tinha sido a solução dos enigmas. Eu dizia eureka! e falava Felman. Repetia diversas vezes a palavra e acordei falando ela em voz alta. Não lembrava nada do sonho, apenas o que acabei de descrever.
Passei a manhã pensando nesse significante. Primeiro achei que poderia ser uma combinação de um tipo novo de gênero – homem de Fel – na tradução direta de Fel-man – homem fel. Achei engraçado, mas ainda não era bem isso. Perdi um tempão da minha vida atrás desses homens, achando que algo do meu erotismo escoaria nesses termos.
Fui estudar e quando voltei a leitura do Escândalo do corpo falante, finalmente achei que tinha entendido a composição do sonho. A eureka tinha vindo da noção de corpo falante de Shoshana Felman. A solução, para meu desejo escoaria, portanto, da aceitação dos convites donjuanescos à promessa de amor que não seria jamais realizada, posto que impossível. Mais uma vez achei engraçado, mas ainda não parecia isso.
Foi apenas a noite, quando sentei pra assistir alguma coisa na tv, que lembrei do nome do filme. Lua de fel. O princípio de uma fantasia que construiu uma cena-fetiche responsável por alimentar, durante anos, um arranjo (não)amoroso que só gerou raiva, amargor, envenenamento e nenhum prazer. O mais importante: tamponou, durante anos, a descoberta do meu desejo erótico por corpos falantes femininos. Que escândalo!
Dai, acordei.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Felman. Em: www.alineaccioly.com.br
