Espirro

Nunca soube a diferença entre uma gripe e um resfriado. Continuo não sabendo. Não acho que seja um tipo de ignorância intelectual. Parece apenas a manutenção de um desconhecimento quanto às diferentes manifestações desses sintomas no meu corpo. Algo que simplesmente nunca parei para destrinchar. A ver. 

O fato é que meu filho ficou gripado essa semana e comecei a ter os sintomas dois dias depois. Um febrão durante a noite seguido de dor de cabeça e nariz entupido. Depois a dor desceu para o quadril e para o corpo todo. Foi a dor no corpo que me levantou a suspeita: e se for covid? Fiquei apreensiva. 

Até os trinta e cinco anos eu não ficava doente por nada grave. Depois desse marco cronológico, já tive covid ao menos três vezes, duas comprovadas com exames. Antes disso, já tive zika vírus e dengue. A fragilidade do corpo veio numa tacada só e, claramente, tenho uma vulnerabilidade no sistema imunológico, porque meus adoecimentos sempre tem a ver com contaminação por vírus. Fiquei muito traumatizada com as sequelas deixadas pelo vírus da zika. As dores nas extremidades corporais (cotovelo, joelhos, quadril e pescoço) se tornaram companheiras do dia a dia, além do desenvolvimento de doenças autoimunes no sistema excretor. Tudo se relaciona com uma inflamação generalizada do corpo. Além disso, perdi um pouco da minha visão do olho direito, que foi o lugar de entrada do vírus (na córnea) e não lacrimejo como antes. Isso virou até piada entre meus amigos, porque a diminuição na produção de lágrimas não me fez chorar menos. Só que agora eu choro e meu olho inflama. As lágrimas agora são de fogo, porque ardem.

A contaminação por covid foi mais assustadora. Tive vinte e cinco por cento do pulmão comprometido, minha saturação ficou baixa e realmente senti que podia morrer, pela primeira vez na vida. Fiquei com sequelas pulmonares, uma fadiga respiratória que transformou minha corrida para sempre. Os primeiros dez minutos até que o pulmão esquente são sempre muito doloridos e ansiogênicos, como se o ar se tornasse uma espécie de olho* de motor que vai amaciando o órgão até ele se tornar menos enrijecido. Agora a entrada de ar também queima, porque arde como as lágrimas.

Assim que percebi os sintomas de febre e reconheci a dor no corpo, o nariz entupido e a fadiga, revivi todos esses sintomas e preocupações como um rápido flashback passando pela cabeça. Ainda bem que meu filho estava em casa. Ele já foi me dando um corte lacaniano, falando que ele nunca pegou covid (o que é verdade, todas as vezes que eu tive ele esteve comigo e nunca pegou) e não seria agora. O corte foi importante. Fui contar para o pai dele que estamos gripados e ele me corrigiu, pela leitura dos sintomas. É um resfriado, Aline. É, talvez seja. Vamos esperar (a ausência de) ardor para ter certeza.

Foi nesse momento que comecei a espirrar. Minha rinite atacou. Quando a rinite ataca, espirro incontrolavelmente. Uma alegria transbordante me invadiu! A cada espirro de rinite me dá vontade de sair gritando ao mundo o quanto sou feliz por espirrar. Explico. Sete meses atrás machuquei o quadril em um treinamento e a dor foi absurdamente terrível. Nunca senti tanta dor como essa! No começo, nenhum analgésico funcionava. Tive que usar morfina por uma semana para suportar a dor e começar uma fisioterapia. 

Foram sete meses de muita dor, de muita imobilidade e muita fisioterapia. Em algum momento desse processo, desconfiei que nunca mais conseguiria correr, fazer qualquer atividade física e até simplesmente sentar e dormir sem dor. A pior parte era espirrar. Aprendi um truque para interromper o impulso do espirro, porque as duas vezes que espirrei enquanto sofria dessa lesão, meu quadril saiu do lugar. Numa delas, eu estava na padaria tomando café e meu amigo teve que me carregar no colo, porque perdi toda a força corporal com o deslocamento do quadril. E havia sido apenas um espirro. A vulnerabilidade do meu corpo estava à flor da pele. 

Hoje, sete meses depois de gastar uma fortuna em fisioterapia, tive todo prazer do mundo em espirrar quatro vezes seguidas e não sentir nenhuma dor! Também não desmontei no ponto de encaixe das duas partes do meu corpo. Estou me curando. 

Tinha alguma lenda que os indígenas diziam sobre o espirro. Parece que espirrar era bom porque tinha algo a ver com colocar os espíritos invasores para fora. Sei lá se isso é verdade, nem ao menos sei se realmente a lenda é essa. Mas com certeza é muito bom poder espirrar e só ficar resfriada sem medo de desmontar e morrer. Só falta dar destino ao ardor. Tô de boas de queimar. Chega de queimar a bruxa.

Ps: o ato falho permaneceu – a ser elaborado. olho de motor – óleo de motor

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Espirro. Em: www.alineaccioly.com.br

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