Paixão

Lembro de quando conheci, no bar, um cara que buscava uma mulher para se apaixonar. Ele deve ter imaginado que eu serviria ao papel porque, tão logo foi possível, começou a palestrar, em minha direção, descrevendo detalhes da vaga ofertada com entusiasmo. 

Ainda que houvesse iniciado seu discurso bradando aos quatro ventos o quanto era feliz sozinho, rapidamente mudou o rumo dos afetos, lamentando-se por passar de mulher em mulher, entediado. Transava compulsivamente com todas elas como se fossem sempre a mesma: a candidata errada para a vaga disponível à sua paixão. Entre essas não-ideais, conheceu uma que quase conquistou o posto. O quase se tornou inesquecível através de uma música apaixonante que fora apresentada pela candidata.

Rapaz curioso esse! Acreditava estar em busca de uma mulher para amar, mas apaixonou-se por uma música e sua letra sofrida sobre um amor bandido. Ao despedir-se desta mulher, agradeceu-a imensamente pela música e seguiu sua busca, agora com uma pista mais consistente da paixão que procurava. Tratava-se de um amor bandido

A cada nova mulher que conhecia, repetia o que então configurava-se num ritual. Após algumas trocas de palavras e checagem dos atributos físicos da candidata, apresentava a música (do celular mesmo) e observava, entusiasmado, a reação da candidata da vez. Secretamente, a cada segundo da música, alimentava a possibilidade de haver finalmente encontrado a mulher buscada, como o príncipe do conto de fadas que segura o sapatinho abandonado após o baile e sai em busca de sua Cinderella. 

Quando lemos o conto de Cinderela de perto, nos damos conta que, apesar de seu pézinho servir ao encaixe do sapatinho perdido, aquela mulher procurada não existia. A bela jovem da noite que encantou o príncipe no baile era, na verdade, um serva pobre que ganhou de sua fada madrinha, por pura traquinagem, um vale night para viver o sonho de uma mulher livre. O passe mágico dava a ela a chance de descansar e dançar, sem ser percebida, entre os membros da alta sociedade de sua época. Por ser tão invisível, na condição de serva aos olhos daquele círculo social, poderia divertir-se apenas ao usar as roupas certas que a transformassem na máscara feminina, um estereótipo do que era esperado para as mulheres de alta sociedade.

Logo, a mulher que coube naquele sapatinho, naquela noite, nunca existiu. O sapatinho perdido era apenas o resto de um carnaval vivido e deixado para trás. Se elaborarmos superficialmente a paixão do príncipe de Cinderela, rapidamente vamos nos incomodar por ele nunca ter sido questionado em sua cegueira apaixonada. Diante de seu fascínio pela ideia de finalmente ter encontrado a mulher perfeita para casar-se, não perturbou-se com a condição para encontrá-la: a mulher ideal seria reconhecida apenas ao encaixar-se perfeitamente no resto da fantasia perdida.

Tal qual a história de Cinderela, o cara do bar, que seguia palestrando em minha direção, não percebia que sua música convergia com o sapatinho perdido da inexistente donzela. Sua fantasia bandida não existia para além de seu universo discursivo. A música, que havia se tornado referência no reconhecimento da mulher da sua vida, não encaixaria em mulher alguma. Ela havia sido escrita apenas para ressoar uma mensagem do carnaval passado, um certo ideal romântico e impossível de amor à moda Romeu e Julieta. Um amor que só existe na condição trágica que leva à morte dos amantes.

Por isso, quando finalmente o cara do bar encontrou uma mulher cansada de servir, mas disposta a ganhar um passe livre para se divertir, a mulher de seus sonhos, encantou-se. É isso mesmo. Em-canto-si. Ficou fascinado pela música de si que naquela mulher qualquer refletia. Apaixonado, usou todos os seus recursos para segui-la, a bandida mulher de sua fantasia criminosa.

A pedra no caminho de seu trajeto surgiu de sua própria versão fictícia de amor. As realizações desse tipo de amor “e foram felizes para sempre” são o casamento, os filhos e, como já havia cantado o Rappa, sentar na poltrona num dia de domingo procurando a paz que não se suporta seguir admitindo. Por mais cativantes que esses elementos pareçam ser, na realidade cotidiana geram apenas um curto circuito sem saída. Fernando Pessoa, poeta português que decidiu viver celibatário durante toda sua vida, já havia nos advertido para o perigo do sonho social de um homem: Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 

Apenas a arte cumpre as promessas de amor, porque só a arte pode redimir o que é impossível no amor. A afirmação de Catherine Millot e dos nossos poetas talvez pudesse ter ajudado o nosso rapaz palestrinha do bar. Mas ele ocupava-se mais em falar do que ouvir. Seus ouvidos estavam surdos, entupidos de sua música fantasmática. Ele seguia vitimizado, em seu discurso, a essa altura embriagado, da mulher perfeita que havia decepcionado seus grandes planos. 

Seu amor bandido havia se tornado uma destruição de tudo o que não fosse semelhante a si mesmo. Eliminava ritualisticamente tudo o que considerava acessório. Assim, não me surpreendi quando ele narrou sua inabilidade em conter-se no exercício de ódio contra ela. A primeira vez que a agrediu, foi quando percebeu que ela tirava os sapatinhos para descansar os pés. A segunda, quando descobriu que ela baixava o volume da música para descansar, cheia de dores de cabeça. A terceira, ao descobrir que ela dançava em outros bailes de carnaval. Porque era preciso destruir tudo que não cabia no amor inventado por ele e é esse o motivo pelo qual seu adjetivo era bandido, afinal. Era preciso destruir tudo o que ameaçava o pé de continuar cabendo no sapatinho, mesmo que para isso fosse necessário destruir todo o corpo que dava consistência a ele.

Roland Barthes descreve a ascese como um fragmento do discurso amoroso. Trata-se de uma operação em que o sujeito apaixonado se entrega como culpado pelo crime do amor através do sacrifício e da autopunição. Seu objetivo secreto, no entanto, é de gerar um sentimento de martírio na pessoa amada, perturbador o suficiente para produzir nela a culpa. A chantagem resulta numa concessão: o sujeito amado cede, culpado, ao sujeito amante. Não porque o ama, mas porque se culpa por não desejar tamanho amor sacrificial. 

Oh, meu erro foi amá-la tanto quanto o sonho cantarolando através da música, seguia lamuriando o cara do bar. A essa altura, ele já tinha deixado de dirigir seu palavrório à minha direção e falava aos homens do bar. No final, restou apenas um homem cheio de ódio e ressentimento, transformado em monstro diante da falta de esforço de sua mulher em seguir cabendo tão bem no sapatinho musical apaixonante. Afinal, que afrontosa havia sido ela na coragem de desfazer-se de tamanha oportunidade de felicidade diante de preço tão ínfimo a se pagar! Por que não tinha aceitado apenas cortar alguns pedaços de seu corpo? Bastava mumificá-lo, para não correr o risco de metamorfosear-se em nada mais, como uma estátua de Maria, mãe de Deus, imóvel na igreja, consistente, confiável, sempre lá. 

O problema era ela gostar tanto do silêncio, disse ele mais uma vez buscando algum conforto em minha direção. Já embriagado por sua própria história, levantou, ressentido, e seguiu em busca da próxima vítima de sua paixão flamejante. Paixão criminosa. Esse era o verdadeiro sofredor de passionais fantasias criminosas!

Tipos como esse pensei que só encontrávamos nos textos de Nelson Rodrigues. E nem estávamos no Rio de Janeiro! Os belo-horizontinos são mesmo uma versão vintage dos cariocas. Pena que ficaram presos no passado glorioso de uma época em que feminicídio não era considerado crime, mas romance de jornal de notícias.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Paixão. Em: www.alineaccioly.com.br

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