Perdendo minha religião

Destaquei o trecho de um livro para ser o tema dos próximos textos. O extrato foi coletado do livro Oh soledad! de Catherine Millot. O único livro que conhecia de Millot, até então, havia sido o testemunho de sua relação com o psicanalista Jacques Lacan (Minha vida com Lacan). Confesso que fui ao encontro de sua letra a partir de um lugar de preconceitos, pois nunca entendi muito bem essa história deles dois que passou do laço entre analista e analisante para o vínculo de amantes. Por isso, antes de apresentar e desenvolver uma discussão sobre o trecho específico, será necessário elaborarmos três digressões.  

A primeira digressão advém de um documentário sobre a criação de músicas que se tornaram hit no passado. Por trás daquele som esmiúça cada camada que compõe a música tema do episódio, convocando seus criadores a escutá-las e contar detalhes de sua criação. Entre vergonhas, embaraços e surpresas, algo me chamou atenção na fala de Bill Berry, baterista da banda REM. 

Após contribuir com a explicação da bateria, do qual foi responsável, ele reconhece um gosto bittersweet na sua relação com Losing my religion, a música investigada naquele episódio. Seu gosto desgostoso tem ligação com a dupla relação que ele construiu, a posteriori, com a música. Ao mesmo tempo que ela marcou a virada de fama e sucesso da banda, por outro lado, roubou os holofotes do estilo musical que o unia. 

Quando decidiram criar o álbum Out of time, a decisão criativa do grupo intencionava que a escrita de músicas fossem consideradas ruins e estrangeiras ao traço comum àquela época de reconhecimento da banda. Eles queriam brincar com o aprisionamento da moda musical que certas bandas sofriam depois de alcançar a fama. Para a surpresa dos quatro integrantes do REM, não só o álbum foi um sucesso imediato, como determinou para sempre o traço musical pelo qual eles seriam para sempre lembrados e reconhecidos mundialmente, com Losing my religion. Bill Berry termina a apresentação do episódio nos lembrando que eles escreveram outras músicas, deixando um convite indireto para que nós, espectadores, pudéssemos finalmente dar chance a banda de ser conhecida, trinta anos depois, por outras letras e sonoridades. 

Escreverei um texto especificamente sobre essa série documental em outro momento. Fico fascinada por projetos que são uma espécie de meta-escrita, onde artistas contam como funcionam seus processos de criação. Não à toa, escrevi Thinkos, onde apresento uma breve leitura do processo criativo de um cantor e tenho estudado os diários de grandes escritores, em textos que serão publicados posteriormente. 

A segunda digressão necessária vai nos ajudar a ler meu atual exercício constante de  esvaziamento dos meus preconceitos. Voltando ao objetivo descrito no primeiro parágrafo, relembro a mutação do meu estilo de leitura desde o primeiro encontro com a letra de Catherine Millot para agora. De outro lugar, testemunho o desmonte da minha própria instância moral boboca através do segundo encontro com sua escrita em O solitude! Não suponho que esse deslocamento tenha relação apenas com as diferentes Catherines que encontrei, separadas temporalmente pelo tempo de escrita de cada um desses livros. Hipotetizo que eu também não encontro seus textos do mesmo lugar. A Aline que leu Minha vida com Lacan definitivamente não é a mesma que vos escreve hoje, após a leitura de O solitude. O que mudou no breve espaço de três anos? Bom, é sobre isso que estou tentando escrever, mas talvez tenha alguma relação com a música de trinta anos atrás. Acho que ando perdendo minha religião. 

Respire. Não se apresse na construção de sentidos da sua lógica para interpretar minhas palavras. Vamos ter que fazer uma terceira digressão antes de seguir. Veja, sempre me considerei atéia. Nunca acreditei muito em nada, mas sempre tive um fascínio por rituais religiosos e seus mitos. No entanto, a expressão da música Losing my religion não é sobre instituições religiosas e relação com crenças. 

Como explicou Michael Stipe em Por trás daquele som, a expressão é uma gíria local de sua cidade natal, Decatour na Geórgia. Lá, o sentido de Losing my religion parece com uma outra expressão brasileira que usamos muito atualmente, a vergonha alheia. Então, quando ficamos embaraçados com uma espécie de revelação de um momento constrangedor vivido ou testemunhado por nós, perdemos a religião, somos surpreendidos por uma experiência de corpo que expressa o desconforto da vergonha que não gostaríamos de ter vivido e testemunhado no outro ou em nós mesmos. 

Não sei se vocês lembram bem do que escrevi em Thinkos, mas uma das grandes preocupações de José Gonzáles durante todo o documentário era tentar cernir o ponto de referência entre a realidade e o delírio para que pudesse controlar a exposição de sua vulnerabilidade nos momentos de ruptura com a realidade coletiva. Em alguns momentos, ele parecia menos preocupado em curar-se de sua psicose, mas em não vivê-la descontroladamente em público. 

O problema é que o brilho de seu processo criativo (seu estilo) se relaciona intrinsecamente com o ponto de não pertencimento ao imaginário coletivo. Eu chamo isso de ponto de dobra, ponto de giro, o instante temporal-espacial em que não encontramos mais familiaridade com os sentidos que nos rodeiam e incontrolavelmente engatamos na leitura do mundo invertido, alterado, através do dicionário composto pelo nosso corpo e por nossa língua estrangeira. O problema é que quando somos flagrados publicamente experimentando essa sensação, quase sempre somos acometidos de vergonha e os que nos testemunham à liberdade momentânea da estranheza incontrolável também transbordam a mesma vergonha irrefreável porque, naquele instante, somos testemunhas de uma partilha impossível de ser assumida. Nossa única semelhança advém do fato de que todos somos um grão de loucura enjaulado, retalhados da possibilidade de semeadura que poderia ameaçar a sensação de segurança estabelecida nos nossos acordos sociais. 

Quando perdemos a religião, ficamos frente a frente com as proibições e tabus que inventamos para conviver coletivamente em paz. O modo como cada um de nós se vira, no silêncio, com essa verdade impossível, acontece pela via do recalcamento, da foraclusão, do desmentido ou da recusa. O que importa, no final do dia, é que esse apagamento silencioso que fazemos todos os dias ao acordar, continue como um segredo que não pode ser revelado para que continue nos garantindo a ilusória união civilizatória e familiar. Para isso, nossa instância moral coletivizada faz seu trabalho diurno, garantindo a falsa sensação de paz que José González preocupava-se tanto em encontrar.

A vergonha alheia, que nos leva a perder a religião, é exclusivamente aquele instante de desvelamento que passamos uma vida controlando para não escapar, muito menos para compartilhar com outro alguém. É quando, por um instante, flagramo-nos estranhos, desenquadrados, desfocados. Revelados! A isso, respondemos quase sempre com vergonha e, quando termos recursos psíquicos, rapidamente transformamos esse desconforto em alguma forma de chiste, desejando secretamente que passe para que possamos nos livrar daquela experiência vertiginosa, esquecendo-a. 

Com essas três breve digressão introdutórias realizadas no presente texto, retorno ao fio que nos guia nessas elaborações. Sinto que estou perdendo minha religião, como quem abandona as referências morais que resultam quase sempre em vergonha, culpa e aprisionamento por reparação. Por isso, encontrei o segundo texto de Catherine Millot a partir de outra morada corporal. Não se tratava mais de defender-me do que supunha ser uma falha moral, dela e de Lacan, testemunhada em Minha vida com Lacan. Dessa vez, encontrei sua escrita buscando aprender sobre essa passagem do feminino que suponho ter sido vivida, analisada e testemunhada através de seus livros. A mudança do meu ponto de partida na leitura de seus arranjos têm sido uma experiência interessantíssima de leitura. Convido vocês a fazerem o mesmo na leitura deste meu escrito (e todos os que se seguem no site). 

Continuaremos amanhã. Porque para falar de amor, há de ser passo a passo.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Perdendo minha religião. Em: www.alineaccioly.com.br

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