Te dou três pontos e você constrói o conto.
Agosto de 2023
Sonho: Saio correndo, em desespero, para o hospital odontológico porque meus dentes estão moles e vão cair. Não posso abrir a boca, porque se abrir, todos os dentes se soltam. Começo a salivar demais e não consigo engolir toda saliva que meu corpo produz e começo a babar. Corro. Abro a boca e inevitavelmente todos os dentes caem espalhados pelo consultório, no chão, na pia, por todo espaço. Alguns caem no ralo da pia e eu desespero. Não vou poder recuperá-los. Estão perdidos no ralo. Lembro da minha avó que colocava a mão no ralo imundo para recuperar meus anéizinhos quando escorregavam no banho. Quando meus dentes caiam, ela mandava jogar no telhado e fazer um pedido. Reparo que meu dentes caem muito facilmente, pois não tem sombra de raiz alguma. Eles são placas brancas, brilhantes e enormes, retângulos de porcelana sem raiz ou como chicletes crocantes ou, ainda, como teclados de piano. Estranho a forma dos meus dentes, como se algo se revelasse. Então, eles eram assim! Não sinto dor, mas desespero. Eles vão caindo e ao cair produzem uma sonoridade de queda e quebra terrível. O som lembra o passar dos dedos nos teclados do piano ecoando as notas musicais e o encadeamento de suas notas musicais da maior pra menor. Não sobra nem um dente pra contar a história. Fica apenas a baba escorrida, a gengiva pelada, o barulhinho de cada nota ao tocar a superfície e o choro doído.
Abril de 2018
Cenas do Cotidiano: Que falta de leitura e atenção! As pessoas são péssimas leitoras! Escrevi uma mensagem à um novo lance amoroso. Afirmei ser “muito doída” e a leitura realizada pela pessoinha elidiu o acento agudo, concluindo que sou “doida”. Corrijo a péssima leitora, enfatizando o acento na palavra escrita. A sonoridade provocada por um acento faz toda diferença! Quando o acento é lido, a ênfase ressoa no meio da vogal da palavra. Doííída, duííída, em mineirês. Não é louca, de doida sem acento. É cheia de dor. Dolorida. Sofrida. Sentida.
Janeiro de 2018
Construção do Fantasma: A infância inteira fui chamada de “lhoquinha” pelos meus pais. O que colou no meu corpo foi o sentido universal, louquinha. Mas nessa forçação fantasmática, perdi a elisão sonora da palavra raiz dessa invenção carinhosa, uma nomeação familiar cujo sentido só poderia advir de sua invenção. Eu era a filhoquinha dos meus pais. Filha de Finha e Finho, abreviação para Fofinha e Fofinho. Filhoquinha, abreviada, virou Lhoquinha. Mas é que já nasci com a nomeação sonora cortada, não sabia da pré-história de invenção de apelidos. Assim, passei anos no equivoco sonoro de sentido, achando que o mais familiar lugar amoroso era de louca, e eu tinha que responder por ele.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Em (des)construção. Em: www.alineaccioly.com.br
