Pensamento Hetero

(Comentário crítico sobre o livro O pensamento hetero e outros ensaios)

Monique Wittig é uma escritora francesa que me chamou atenção, em princípio, por defender que o termo Lesbica é uma posição política e não apenas uma orientação da sexualidade. Posteriormente, me interessei por suas pesquisas acerca da escrita dita feminina. Seguindo sua transformação da palavra lébisca como categoria lógica (e não sexual), a escritora realiza a mesma operação com o termo feminino, já que este deixa de ser um atributo referente à sexualidade dita de mulheres

Por se inscrever através de mitologias que inventaram a existência de uma mulher e de um homem como categorias lógicas distintas, os signos cujos sentidos estão determinados por tais sistema discursivos, onde nasceram como formas de atribuição de significados, são recusados pela feminista, determinados como dispensáveis. Wittig apresenta sua hipótese através de uma leitura do mundo por uma abordagem política e filosófica do lesbianismo materialista. 

Ainda como parte de sua metodologia de trabalho, Monique Wittig decide dialogar exclusivamente com teóricas praticantes do exercicio feminista. Suas articulações partem do princípio de desmontagem de lógicas conceituais que ela nomeia como pensamento hetero. Segundo a escritora, não se trata de mergulharmos nos sentidos e conteúdos veiculados pelas teorias, mas e, sobretudo, detectar como a linguagem, sendo o sistema que suporta essas elaborações políticas, históricas e filosóficas realiza, per se, uma alienação a um certo modo de razão científica. O modo como a filosofia se desenvolveu, as lógicas matemáticas, dentre outras, partem de metodologias e invenções conceituais que estão contaminadas por um certo olhar ilusoriamente universal, o pensamento hetero. Logo, podemos escrever sobre o feminino e exaltar a escrita atribuída ao exercício de feminilidade, mas já estaríamos caindo no engodo da referência particular (mulher) de um universal (homem) que é o próprio aprisionamento dos sentidos possíveis para a noção de feminino que parece surgir, inescapavelmente, da divisão nada natural dos sexos. 

A partir desses impasses, Wittig investiga textos escritos por autoras feministas para investigar como constroem seus modos de travessia epistemológica de tal problemática. Com esse movimento, ela abre espaço para autoras que são esquecidas, cujas teorias não são estudas dentro do próprio movimento feminista e, ao mesmo tempo, abre caminhos para que possamos nos referenciar apenas a letras que compoem nossas invenções, quebrando com a maxima racionalista que nos obrigaria a citar supostos autores fundamentais por suas imortancias historicas e cronologicas, esquecendo o numero de existencias dissidentes que foram apagadas nesses caminhos. Afinal, com quantas teorias de mulheres silenciadas se constrói um famoso autor e importante epistemologista em sua época?

A primeira crítica maciça de Wittig incide dentro do próprio campo filosófico femininsta. Ela desmonta a noção política constituída pelo feminismo francês a partir da noção de “mulher essencial” que existe ao escrever um tipo de feminino. Não existe mulher essencial, posto que reconhecemos o universal masculino como uma mitologia científica. 

Esse heterofeminismo se mantém propagador de um pensamento heterocentrado como uma anterioridade referencial. Não por acaso, a escritora “sobrou” do Questions féministes, uma publicação organizada para dar voz às teorias feministas da época. Discutir a proposição de uma heterossexualidade compulsória atrapalhava, segundo suas colegas escritoras, uma certa noção de hegemonia discursiva que já se alicerçava em oposição ao machismo estrutural. O feminismo hetero, nessa perspectiva, se oferecia como a outra voz possível, compreendendo que não poderia fundar-se através de uma ruptura definitiva com a estrutura vigente. 

Wittig deixa o coletivo de feministas francês afirmando, textualmente, que lésbicas não são mulheres, mas corpos políticos que recusam referir-se a lógica mitológica que afirma a predominância da norma fálica. Numa tentativa de romper com a mitologia concernida ao significante mulher, Wittig demonstra que o novo universal para o feminismo é ainda referido à mesma mitologia hetero. Começa assim sua composição prático-teórica sobre a escrita do pensamento lésbico, cuja definição determina que lésbica é uma via de rasura, fronteiriça, posto que não obedece a uma performatividade conformativa de gênero. Lésbica é a nomeação da ruptura com uma ideia estereotipada de feminilidade, por isso não necessariamente conceitua uma noção de identidade em contraposição a outra, mas é a tentativa de escrita de existências que se percebem em disssidência com a referência qualquer a uma dependência econômica, social, cultural e biológica da noção figurada de homem. 

Sobre esse termo, inclusive, Wittig retoma que homo (sapiens) não define o gênero homem, mas a espécie humana e esse seria o nosso referencial social de espécie. O roubo da universal, através da tradução equivocada de homo por homem, estabeleceu a ideia de uma referência natural através de uma trapaça lógica. Podemos enfrentar essa falácia tão sedimentada através dos esforços teóricos que desenvolvemos com vias de demonstrar essa hipótese. Podemos, ainda, alterar o uso e as funções da escrita de palavras tão referidas a significados que recaem nos engodos gramaticais supostamente universais da língua. 

Quando uma lésbica rompe com a heterossexualidade compulsória em todos os aspectos formais, especialmente no seu modo de pensar, teorizar racionalidades e escrever-se, ela abre portas a existências possíveis e fundadoras de novas formas de amar humanos, de inventar formas de enlaçamento entre humanos em suas fronteiras existenciais. 

Caminhar pelos trilhos abertos de Wittig não se torna fácil em nenhum encontro com todos os textos fundacionais da filosofia e do próprio feminismo. Enfrentar a heteronormatividade de Simone de Beauvoir, por exemplo, fez ela ser considerada persona non grata entre as militantes feministas de sua época. Elas foram colegas de feminismo francês por muitos anos, mas quando Wittig demonstrou que o axioma fundamental de sua filosofia “não se nasce mulher, torna-se” é (ainda) a escrita do re-contrato com o pensamento hetero, seus pertencimento ao movimento feminista foi questionado. 

A base da misoginia estrutural não é apenas de fundo biológico, como se costuma pensar. Não esqueçamos que nossa ciência biológica originária foi extremamente entremeada com o discurso religioso, fazendo um grande acordo de compromisso (sintoma) teórico que levou adiante pesquisas cujo enfoque confirmava a suposta natureza de gêneros binários, para não dizer de tantas outras falácias enviesadas. Nessa perspectiva, o matriarcado não seria menos problemático e heteronormativo do que o patriarcado. A mudança estaria apenas no sexo que justifica a opressão. 

Mulher não é um conceito essencialista. Homo sum. A revolução epistemológica de Wittig começa pela abordagem dessa noção. Ao desenvolver a noção de uma sociedade lésbica, a condição Sine Qua Non implica numa recusa aos papéis de gênero impostos para corpos marcados por certa leitura biologica. Estes fatos não podem continuar sendo afirmados como categóricos e inquestionáveis. É preciso abandonar os feminismos que propõem as saídas pela escrita feminina, porque ela ainda vem atrelada à categoria biológica e religiosa de fêmea, de mulher, mesmo que o discurso pareça remeter a uma cientificidade falaciosa. Permanecer no exercício da escrita é uma decisão política de corpos falantes, mas romper com seus atributos forçados para nomear e categorizar essas escritas como excessão – feminina é uma condição de sobrevivência do texto, sem o qual nada do que escrevemos permanece.

O sujeito excêntrico nomeado como lésbico por Wittig produz um deslocamento psíquico porque excede categorias de determinação sexual, psíquica e erótica. A existência política lésbica é um exercício de recusas, especialmente da prática de conhecimentos e epistemologias cuja racionalidade não são menos equiparáveis a criações mitológicas. O trabalho de criação do pensamento lésbico se consolida através de um trabalho de linguagem. É por esse aspecto, principalmente, que ele se aproxima de um certo discurso psicanalítico e seu trabalho de subversão através da linguagem. Mas, qual psicanálise?

Me chama atenção como a proposição de trabalho que Wittig articula, através da transformação do termo lésbica, enseja uma prática política não identitária, mas de rasura. Paradoxal, não é? Utilizar um termo constantemente atribuído às categorias identitárias que reforçam a exclusão e transformá-lo em três operações fundamentais: recusa, rasura, estilo. E não são essas as operações que compõem o ato de escrita?

Além disso, para responder a qual psicanálise essas discussões interessam, não poderia deixar de aproximar essas elaborações de nosso querido filósofo contemporâneo, Paul Preciado. Há uma proximidade entre a subversão teórica que Wittig constrói através da deformação do termo lésbica com a noção de dissidência praticada por Preciado. Sua filosofia, seu corpo, sua escrita também são desenvolvimentos teóricos e práticos sobre a desconstrução (e destruição) do universal hetero. Para isso, ele propõe que atravessemos um para além da referência de espécie humana. Para seguir sobrevivendo, precisamos metamorfosear, tornar-nos mutantes de nossa própria experiência humana, viver o mundo em disforia. Mas isso já é outro texto.

Para Wittig, sua rasura adveio através do significante lésbica. Para Preciado, sua rasura tem como suporta os atos de dissidência. E você, o que nomeia seu estado de rasura em constituição, mirando uma escrita por vi?

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Pensamento Hetero. Em: www.alineaccioly.com.br

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