Sinfonia

Domingo. Oito horas da manhã. Abro os olhos e transbordo. Puta que pariu, ele escreveu uma sinfonia! O cara escreveu uma sinfonia! Uma sinfonia! Como alguém pode viver e passar por uma vida sem ao menos desejar ter escrito uma sinfonia? O quão insignificante é viver sem tentar escrever uma sinfonia! Por que perdemos tempo com dramas da vida quando a gente pode escrever uma sinfonia? O cara escreveu uma sinfonia enquanto a mulher lutava contra o câncer. Caraca. Uma sinfonia.

Não falei essas palavras porque estava sozinha em casa. Mas pensei no formato de narrativa. Já era um texto chegando. Esse aqui. A empolgação que transbordou, assim que abri os olhos nessa manhã, tem relação com o documentário que assisti semana passada, American Symphony. O documentário foi indicado ao Oscar e há motivos plausíveis para tal indicação. Ele apresenta um recorte temporal da vida do músico Jon Batiste.

Três são os principais eventos retratados no documentário: a indicação de Batiste a quatorze Grammys; a luta contra o câncer de sua esposa Suleika; a composição de uma sinfonia que dá título ao documentário. Acompanhamos como esses três eventos são imiscuídos e quais efeitos esse emaranhado produz nos seus afetos, nas suas relações e na sua habilidade criativa. 

Assistimos a vários momentos notáveis e importantes ao longo do filme. No entanto, o que me capturou logo no início foi a Odisséia que Jon decidiu atravessar, a la Ulisses, com o desejo de compor do começo ao fim, passo a passo, sua primeira sinfonia. No nosso universo de normopatias, tendemos a não pensar muito sobre as criações artísticas. Especialmente em nossa realidade capitalista, cujo valor de um ser humano é ligado à sua capacidade de trabalho e produção. E não se trata de qualquer categoria de trabalho, como é o caso da criação artística. Assim, a grande maioria dos cidadãos comuns não são criados para sonhar com a arte. A música, o cinema, as pinturas, não alçam à categoria de sonhos possíveis levados a sério. 

Nos casos em que as crianças crescem em famílias e realidades privilegiadas, elas até são incentivadas à prática de artes. Mas quase sempre permanecem atividades de segunda categoria, como diversão e entretenimento. Nos casos em que as famílias incentivam a profissionalização através da música, a transmissão parece uma prática artesanal. É um ofício ensinado de pai para filho que, por sorte (ou algum tipo de indicação de um parente que já é inserido no meio artístico), pode tornar-se uma arte reconhecida por algum produtor artístico.

Jon Batiste leva essas condições a outro patamar. Ele estuda em Juilliard, uma das universidades mais importantes no ensino de artes e música. Inserido no espaço mais conservador e tradicional no modo de pensar as artes, ele não leva a música a sério e essa postura ética muda completamente seu percurso em relação à criação artística. É porque ele leva a sério seu desejo de compor, de se relacionar com a música como pura invenção, que subverte, ousa, reinventa tradições e abre caminhos para se relacionar com seu processo criativo. Não à toa, o filme retrata a indicação de Batiste a quatorze Grammys, dos quais ganhou cinco no mesmo ano. 

Mas ele não para. Antes mesmo de saber das indicações a um dos prêmios mais importantes da música, já estava envolvido com o projeto da sinfonia. Acompanhamos, ao longo do filme, que seu desejo tinha pouca relação com uma necessidade de reconhecimento. Tratava-se de uma ânsia pelo desafio de reinventar a lógica de criação e composição musical de sinfonias americanas.  

Sua narrativa é sofrida e cativante:

O que nós amamos na música não é o que soa bem.
O que amamos na música é o que soa inevitável.
É o que vai se desdobrando. 
É tocar a coisa que sabemos que está se revelando,
aceitemos nós ou não.
E está lá sempre.
Só precisamos estar abertos.
Jon Baptiste


Quando acordei hoje pela manhã, um dia de domingo, fui prestar uma prova para tentar uma segunda graduação. Durante os primeiros quarenta anos da minha vida me profissionalizei na psicanálise. Logo, contabilizarei vinte anos de prática clínica. Depois que a gente trabalha com a ética do desejo e com o inconsciente como política, não dá mais para viver o mundo de outro jeito. Se torna inevitável.

Nesse caso, o inevitável não é encerrar a vida apenas no caminho no campo psicanalítico. Nunca foi, desde o princípio. O inevitável está na decisão, dia após dia, de não ceder do desejo, esse sim inevitável. Esse, que brota do nada. Que acorda a gente num domingo às oito da manhã transbordando. Uma vontade enorme de sinfonia, seja já o que significar sinfonia para mim. E para você. Qual é sua sinfonia, inevitável?

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sinfonia. Em: www.alineaccioly.com.br

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