(O texto é uma rescrita, com alterações, de Azeitona)
O pai de Ofélia se chamava Geraldo. Ele era filho de Maria Oliveira, a matriarca de uma família que passou desapercebida pelos noventa anos de sua existência. Tudo que se sabe sobre ela figura apenas o que nunca realmente se soube de sua história. O que seus filhos, netos e bisnetos contam para as novas gerações apenas contribui para a certeza de que nenhum deles conheceu a mulher que lhes deu a vida.
Maria foi enlaçada e roubada não se sabe bem a idade. Era ainda menina quando perdeu seu nome, sobrenome e o direito de contar sobre suas origens indígena-nordestina. Aos treze anos, já carregava no ventre o primeiro filho concebido através de uma nova narrativa que estava sendo escrita por seu sequestrador. A mitologia familiar que nasceu junto com essa primeira criança carregou, para sempre, um exemplo moral de sobrevivência e da força feminina de uma mulher selvagem que insistiu em viver noventa anos, a despeito de todas as alienações forçadas nas diversas camadas de sua vida.
O que a mulher, cujo nome nunca foi Maria, viveu, nunca saberemos. Ofélia guardou em segredo durante muitos anos uma cena que a despertou para o enigmático segredo sobre a vida de sua avó paterna. Aos noventa anos, já idosa e sem memória, Maria só queria ficar pelada e cantar para embalar seu desejo impossível de dançar, aprisionada num organismo em decomposição.
A maioria de seus filhos se envergonhava diante do seu desejo despido diante de seus olhos. Era o retorno de uma mulher às origens até então estranhas aos próprios filhos. Estes, preferiam manter viva a mitologia que construíram sobre ela, na voz e na escrita instaurada pelo roubo de sua subjetividade e de seu corpo. Seu corpo nú, cantante e desejoso de movimento, parecia degradar sua imagem moral narrada pelos filhos nas festas de final de ano. Mas Ofélia nunca se esqueceu do único momento que flagrou a irrupção da menina índia perdida que um dia aquele corpo livre foi e que só na morte pôde ocupar novamente seu corpo.
Marcada pela experiência secreta, Ofélia pensou nos efeitos desse silêncio em sua vida. Decidiu busca de pistas sobre essa narrativa nunca contada. Dos restos e fragmentos que sobraram, Ofélia coletou apenas fofocas, em tom desconfiado, de como Maria matava galo, porco e homem (se precisasse) com uma habilidade admirável. Sua potência virou um palavrório familiar sobre sua força de trabalho e uma ausência de medo para fazer o que fosse necessário para sustentar seus filhos.
A família costumava justificar o fogo sexual e selvagem que Maria tinha à sua origem perdida. Índia né, sabe como é! – Alguns filhos diziam. O mito acerca de Maria parecia bastante consolidado e pouco elaborado, mas Ofélia conseguia discernir alguns estereótipos de gênero e raça que alimentavam um vazio sobre aquela mulher. Quase nada restou sobre a narrativa de uma mulher que sobreviveu a sequestro, estupros, tentativa de dominação, muitos maridos e vinte e um filhos.
Geraldo foi um dos vinte e um filhos de Maria, um dos caçulas. Por isso, soube pouquíssimo da história da família. O que sabia, escutou das irmãs mais velhas. Ao transmitir sua versão dessa história para Ofélia, Geraldo nunca soube contar por outra via que não fosse uma encenação cômica sobre como ela era não apenas sua mãe, mas também sua tia-avó. Geraldo fazia graça da confusão simbólica na árvore genealógica de onde vinha e costumava atribuir o caos parental ao comportamento sexual irrefreável de Maria. No entanto, a realidade é bem menos novelesca.
Maria foi mulher tanto do avô de Geraldo, o coronel Carlos, como de seu pai Lyon, neto de Carlos. Sequestrada pelo coronel numa versão ou vendida pelos próprios irmãos em outra versão, o ponto que amarra essas narrativas é que Maria serviu ao coronel Carlos nos serviços da casa, da fazenda, como enfermeira de sua esposa doente e nos serviços sexuais. Com ele, teve uma filha, sua primeira gestação, quando ainda tinha treze anos.
Depois que a dona da casa morreu de tuberculose, Maria seguiu servindo ao Coronel, seus filhos e seus netos. Na história brasileira, pessoas cuja descendência é indígena não advém originariamente de um mesmo sobrenome, pois são de tribos distintas. No entanto, passam a assumir o nome dado por seus seqüestradores, como foi o caso de Maria Oliveira. Essas Marias e Oliveiras tiveram seus corpos, seus sexos, suas bundas brasileiras partilhadas entre os homens da mesma família e, posteriormente, aprenderam a tirar alguma vantagem desse pedaço brasileiro tão desejado em troca de comida, casa e cuidado aos irmãos e filhos (alguns concebidos por estupros).
Dessa mitologia familiar, a transmissão geracional incutia às mulheres a função de garantia dos cuidados parentais através de um valor advindo dos atributos indígenas brasileiros – cabelos longos e lisos, bunda grande, pele queimada de sol e capacidade de fazer qualquer trabalho difícil sem contestação. Ofélia passou muitos anos aprendendo a ser mulher forte como sua avó e suas tias. No entanto, foi apenas adulta que percebeu o que se traduzia com essa expressão de força feminina. Tratava-se, sobretudo, de sobreviver às violências domésticas e de gênero sem perder a força de trabalho e manter o único traço racial que interessava ao colonizador: o mito de sexualidade íntima exercida como um fogo selvagem.
Quando criança, Ofélia ainda não sabia de nenhuma dessas lógicas entremeadas pelos lugares sociais, familiares e históricos acerca do que era ser mulher. Tornar-se mulher, nessa lógica, implicava menos o exercício de uma liberdade a lá Simone Beauvoir. O esforço na construção de mulheres era um empreendimento que resultaria em uso, troca, vantagens familiares e sociais. Para isso, seu pai sempre cuidou bem de sua bunda brasileira.
Ofélia nasceu com nádegas grandes e avantajadas, da mesma categoria que as mulheres filhas de sua avó Maria. Essas bundas valiam mais do que ouro! Eram a própria força de trabalho! Sua madrinha Isildinha, a filha preferida de Maria, aos quatorze anos já era graduada na arte de negociar seu corpo. Oferecia os serviços de trabalho da sua bunda brasileira para o dono da loja de material de construção e recebia, em troca, cimento, tijolo, elementos para uma construção.
Aos dezesseis anos, Isildinha casou-se com Betão, dono da loja de material de construção do município. Casada, Isildinha conseguiu tornar-se a sustentação da família e com isso libertou sua própria mãe Maria da necessidade de vender seu corpo, já cansado. Maria pôde finalmente experimentar sem culpa o gosto de suas paixões e, ao mesmo tempo, construir seu pequeno império de cimento na favela fluminense. O puxadinho rapidamente cresceu e transformou-se em três andares de quartinhos. Inicialmente foram alugados para gerar renda familiar, mas terminaram por abrigar as famílias de cada um de seus filhos adultos. Eram dezessete, depois de quatro mortes. Esses dezessete tiveram filhos se casaram e trouxeram as esposas e seus filhos. O lugar tornou-se uma comunidade de filhos, netos e agregados de Maria, que nunca deixou de ter o apoio direto do dinheiro advindo do trabalho das bundas brasileiras de Maria e depois de Isildinha.
Quando Maria passou o bastão para Isildinha, esta não apenas recebeu o ônus da manutenção de fornecimento de cimento, mas também a responsabilidade de abrigar e alimentar seus irmãos. Dentre eles, estava Geraldo, pai de Ofélia. Por ser muito mais jovem que a própria irmã, Isildinha cuidou de Geraldo como quem cuida de um filho. Graças ao pequeno comércio de bundas, herança transmitida de mãe para filha, Geraldo teve casa, comida, estudo e emprego.
Ele costuma dizer o quanto foi privilegiado em comparação aos seus irmãos mais velhos. Também costuma ser muito grato a Betão, pela sorte de ter caído em seu gosto. No entanto, sabemos bem que a sorte tem nome. Chama Isildinha e sua bunda brasileira. Por isso, Geraldo preferiu apagar de sua memória os momentos em que presenciou o preço que sua irmã pagava pela boa vontade deste cidadão do bem, provedor da casa. Ele testemunhou de perto, ao longo de anos, a infelicidade da irmã, que tinha nojo do marido e, infeliz, pulava a cerca com a grande paixão de sua vida. Quando passava por situação de violência doméstica, a família costumava atribuir essas dificuldades à selvageria de Isildinha, que tinha o sangue e o fogo das Oliveiras, como de Maria.
Geraldo cresceu, engravidou Denise e passou ele mesmo a assegurar a passagem do bastão de bunda. Quando Ofélia ainda era criança, Geraldo a levava para passear na casa de Isildinha, sua madrinha. Lá, Ofélia aprendia a arte de rebolar a bunda de ouro, o tesouro das Oliveiras herdado em seu corpo. Isildinha festejava a possibilidade de finalmente passar o bastão do reino e enchia Ofélia de jóias de ouro. Afinal, ela seria a próxima a garantir a tradição familiar.
Geraldo auditava e investia na disciplina da bunda de Ofélia. Ensinava quais calcinhas usar para não a deixar cair nunquinha. Acontece que Ofélia também possuía o fogo selvagem das Oliveiras e não parecia conformada em ceder a tradição das mulheres de sua família. Ficava noiva de homens importantes, mas encerrava os romances a contragosto do pai. Entendendo que seu erotismo era um problema que não conseguia ser solucionado no destino de sua tradição familiar, Ofélia se tornou presa fácil para um abusador que acertou em cheio o tesouro de seu papai.
Ofélia sangrou durante dias naquela bundinha preciosa, tão bonita e redondinha, lembrando das falas intrusivas do abusador. Este sussurrou em seu ouvido que ela não seria um desperdício e, fazendo coro com as vozes de Geraldo e os homens antes dele, deixou marcado o destino indesviável das Oliveiras, por bem ou por mal. Ela não teve o corpo roubado e uma vida inteira sequestrada, como sua avó, mas ficou anos enclausurada no buraco deflorado de sua bunda. Naquele buraco de merda e sangue que insistiam em afirmar com seu único e precioso valor herdado. Assustava-se com o modo apaixonado com o qual os homens insistiam em transformar corpos livremente despidos em propriedade privada.
Não podemos esquecer que o avô paterno de Ofélia, Lyon, se apaixonou por Maria Oliveira e nela fez dois filhos mesmo sabendo que ela era propriedade do coronel, seu avô. Sonhou em uma vida amorosa possível, mas quando ela finalmente se viu livre de sua prisão chamada Carlos, Lyon mudou de ideia. O rapaz já tinha sido avisado pelos colegas que sua vida profissional não seria vista com bons olhos ao ser acompanhado de uma mulher da vida. Maria Oliveira ainda era jovem, mas já carregava o peso de dezessete filhos e mais os dois de Lyon.
Herdeiro do horror escravagista, mas intelectualizado, Lyon preferiu os costumes burgueses aos coloniais. Envergonhou-se de seu passado e de sua paixão pela bela indígena sequestrada. A essa altura, Maria já tinha quase quarenta anos e ele ainda estava nos seus vinte. Não se tornaram como Eduardo e Mônica, eternizados pela música de amor, porque Lyon era apaixonado, mas não sabia discernir entre o amor e o poder. Sua música acabou sendo outra. Assim, após ter se refestelado com uma bunda Oliveira, terminou por casar-se com uma Amélia. Porque Amélia que era mulher de verdade! Branca, magra, delicada. Criada para ser esposa e mãe. Lyon foi embora, casou-se com Amélia e teve três filhos. Os dois filhos que teve com Maria sobraram na história. Um deles era Geraldo, pai de Ofélia, lembram?
Quando ficou mais velho, Lyon escutou os conselhos católicos de Amélia e passou a convidar Geraldo e Lyon Filho para os almoços burgueses de família. Em seu pequeno castelo no centro da baixada fluminense, casado, fútil, cotidiano e tributável, Lyon unia sua família e seus filhos bastardos. Convidava-os a partilhar de suas deliciosas porções de azeitonas. Não era qualquer pessoa que podia comprar azeitonas verdadeiramente portuguesas na baixada fluminense nos anos setenta. As azeitonas são frutos das oliveiras, árvores que se tornaram sobrenomes de diversos escravos comercializados na época escravagista brasileira. Os colonizadores portugueses que se estabeleceram em nossas terras não roubaram apenas nosso ouro e riquezas, mas também nossas mulheres, nossos nomes e sobrenomes originários, nossas narrativas e nossos destinos.
Lyon, avô de Ofélia, seus filhos e esposas chegavam a babar e lamber os beiços, aos risos, comendo as azeitonas. Como os porcos, refestelavam-se do fruto das oliveiras e das Marias Oliveiras. Naquele espaço familiar, cristão e afetuoso, Ofélia cresceu e teve acesso à intelectualidade, à cultura e às tradições burguesas. Lyon comia azeitonas e arrotava racismos e preconceitos de toda sorte ao som do melhor jazz e blues americano. Ofélia os amava, encantava-se com a música, mas detestava azeitonas. Achava de mal gosto, ainda que não soubesse explicar o motivo. Apenas não lhe caia bem. Ela nunca teve desejo de gozar das azeitonas, assim como não teve vocação para carregar sua bunda de ouro. Ofélia gostava da música, dos ritos, dos livros e pensava: teria ela que pagar o mesmo preço das Oliveiras para gozar e ser gozada como as azeitonas?
Ofélia cresceu, teve filhos, casou-se e separou-se algumas vezes. Geraldo, seu pai, constantemente a comparava com Maria e Isildinha, deixando claro sua expectativa de transmissão geracional acerca do lugar feminino. Os quarenta anos de Ofélia chegaram e, aceitando o fracasso do leilão da sua bunda, Geraldo, sem perceber, começou a mudar a mitologia da origem de Ofélia. Algo tinha dado errado. O que, afinal, tinha sido o erro?
Em um tradicional domingo de almoço em família, bebendo cerveja e comendo suas azeitonas, Geraldo comentou sobre o tamanho da bunda do seu neto, filho de Ofélia. Ela não teve filhas mulheres, de modo que não apenas interrompeu o circuito familiar em torno do valor da bunda, como não transmitiria a filhas mulheres. Seu filho mais novo, no entanto, havia herdado os dotes de oliva.
Geraldo observava pela primeira vez tal particularidade de seu neto, adolescente, e incomodava-se com o que via. Seu tom era de estranhamento, não familiaridade. Ofélia riu e recuperou toda a história que acabei de contar para vocês. Ensejava lembrar ao pai, já velho, a transmissão que ele mesmo realizou por tantos anos. Ofélia narrou o fio familiar constituído através da bunda brasileira, o totem familiar que foi signo e determinante da personalidade das mulheres daquele clã.
Surpreendentemente, pela primeira vez em sessenta e cinco anos, ele recusou a descendência. Afirmou, desconfiado, que havia notado uma diferença na característica daquelas bundas (de Ofélia e seu filho). Segundo ele, elas não eram apenas grandes, mas arrebitadas, com um formato que sugeria o pertencimento a outra linhagem que não das olivas. Fazendo um silêncio reflexivo, Geraldo começou a rir sozinho e apresentou a hipótese que havia construído naquele instante: Cesinha, o vizinho da frente da casa da sua mãe na adolescência, tinha uma bunda como a sua e de seu filho. Ele riu e continuou comendo suas azeitonas.
Ofélia manteve-se em silêncio, pensando na necessidade dos homens de mudar suas mitologias particulares quando não conseguem conceber porque elas fracassaram. Para Geraldo, era incabível que ele tivesse falhado na transmissão geracional da função das bundas brasileiras. Assim, era mais simples revelar que talvez o problema estivesse na bunda. Talvez ela não fosse tão de oliva assim. Estranha, não familiar.
Se do limão o brasileiro faz limonada, Ofélia fez da bunda merda. A ligação de Ofélia à suposta força feminina familiar não se deu pela via do uso de sua bunda de ouro. Preferiu passar o cheque, como dizem os gays ao fracassar em dar a bunda. Do buraco de merda que a engoliu anos antes, violada, ela transformou merda em força, devolvendo a bunda seu uso político. Feministinha de merda. Afinal, nunca tinha saboreado o gosto amargo das azeitonas. Preferia o gosto indefinível e despido do corpo livre cada mulher, impossível de domar. Como de sua avó. Não aquela da história roubada. A selvagem. Um coração selvagem.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Azeitona II. Em: www.alineaccioly.com.br
