Máquina de datilografar
Quinta-feira, dia 25 de março de 2021
Tenho mentido para você em quase todas as minhas últimas cartas. Elas não foram datilografadas, porque minha máquina quebrou de tanto eu escrever e, devido a pandemia, ainda não consegui consertá-la.
O ímpeto de escrever que se inciou com a datilografia não cessou de se escrever enquanto ela está quebrada e tive que roubar no meu próprio jogo e passar para meu computador de mesa.
Esse computador de mesa estava sem uso a alguns anos. Preciso contar sua história, já que agora ele é o novo objeto que dá origem a essas cartas. Cada objeto com suas particularidades que me atravessam enquanto eu escrevo.
Foi nesse iMac que escrevi meu mestrado, em 2011. Parecia muito importante, naquela época, poder escrever meu primeiro texto acadêmico relevante em um produto da apple. Depois do fim do mestrado, no entanto, o macbook passou a ser meu companheiro de aulas, por ser o objeto mais simples de ser carregado para onde eu ia. Desta forma, o iMac foi parar nas mãos do meu filho, que passou a utilizá-lo para games e outras bobagens comuns a pré-adolescentes.
Ao me separar, o iMac veio comigo, seguindo no quarto do meu filho. Depois de alguns meses, já obsoleto para os fins de jogos (visto que a tecnologia não perdoa objetos rapidamente ultrapassados tecnologicamente), o iMac voltou pra mim. A princípio, não dei muita bola, ainda envolvida com as praticidades do meu macbook no território.
Em 2018, iniciei meu doutorado em Belo Horizonte e ter que viajar semanalmente reafirmou o lugar do macbook na minha vida de escrita. Toda semana estava na estrada, de ônibus, carro ou avião, e fazia sentido ter um aparelho que pudesse estar comigo onde eu estava.
Mas, em 2020 a pandemia chegou e com ela minha fixidez territorial. Além disso, me parecia que escrever um doutorado requeria mais espaço, mais conforto e mais visão dos meus estudos, textos e escritos. Foi assim que o iMac voltou a tona. Liguei o bichinho, que ainda estava funcionando perfeitamente, apesar de desatualizado e antigo. Ajustei tudo que precisava e instalei ele na sala, para usar junto com meu macbook. Duas telas, maior agilidade na escrita do doutorado, pensei.
Era pandemia e eu não estava sozinha em casa. Meu filho passava bastante tempo comigo, enfurnado no seu quarto e meu namorado da época tinha recém mudado para meu apartamento, de forma que vivíamos um certo aperto e estranheza naquele pequeno espaço de quarentena.
Mal comecei a usar meus objetos de escrita e já os perdi. O novo morador esbarrou numa cadeira e derrubou a mesa, deixando cair não apenas todos os meus livros que estavam em cima da mesa, mas também meu iMAC. Assim, ele se espatifou no chão e quebrou o vidro. No desespero, liguei o computador para saber se o estrago era só externo ou interno, já sabendo que não teria condições financeiras de consertar qualquer que fosse o dano. Não mencionei até o presente momento, mas eu não comprei nenhum dos meus queridos objetos de escrita: os dois foram presentes de uma época em que eu convivia com pessoas ricas de São Francisco.
Apavorada, liguei o iMac e descobri que ele estava perfeito, intacto, funcionando. Mas sua tela estava quebrada, craquelado, aos cacos. Não poderiam nem ser retirados, já que a tela das coisas da apple é toda diferenciada e tudo é grudado. Assim, renasceu o iMac com sua tela fragmentada. E foi assim que ele viajou para meu novo apartamento, que comprei meses depois.
Agora, sozinha no meu apartamento, tenho um escritório com uma mesa enorme em que ficam dispostos, lado a lado: meu macbook, a esquerda, meu iMac fragmentado no centro e minha maquina de datilografar, a esquerda. Meus objetos de escrita, cada um com suas peculiaridades.
Logo, posso dizer que roubei um pouco no jogo, porque todas essas cartas deveriam ser datilografadas, dado que meu desejo de escrita é analógico, como já disse em alguma missiva anterior. Mas a minha escrita também e feita de fragmentos, assim como a fragmentação da tela do meu iMac, no qual escrevo agora. É seu charme, assim como tento fazer da minha escrita em pedaços.
Comecei a escrever essa carta para confessar minha mentira. Comecei a escrever essa carta para interromper um circuito de escritas de expiação. Tenho me sentido errante e muitas vezes as palavras que escrevo são como chicotes nas minhas costas, castigos, punições, sacrifícios. Já escrevi milhares de textos assim.
Quando iniciei o projeto de escrita datilografada, essa escrita não nasceu para ser a expiação de qualquer coisa na minha vida. As palavras que nascem nesse processo são acolhedoras, afetivas, livres. Precisei autoconfessar um engano para realocar o meu desejo e sua relação com as palavras dessas cartas.
Minhas palavras constróem meus objetos, meu mundo, desenham meus afetos. E nesse momento é sobre libertação que escrevo. E se meus objetos precisam ser alternados, de vez em quando, para que o desejo da escrita livre continue, me permito também a liberdade de alterar minha trajetória, reconstruir meus instrumentos, territórios e seguir. Livre. Errante. Seja com qualquer modalidade de escrita.
Esperançosa,
Al.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Datilografia Pandêmica. Em: www.alineaccioly.com.br
