Domingo, 07 de junho de 2020.
Querido Freud,
Estamos vivendo uma quarentena cujo status de término é indefinido. Enquanto descobrimos novas formas de viver mediante o enclausuramento de corpos, psicanalistas de nossa geração tentam oferecer escuta online e pesquisas sobre os sonhos de quarentena. Acho que estão tentando emular as pesquisas que você desenvolveu sobre os sonhos e as neuroses de guerra. Todo mundo ainda quer uma pedaço do seu bolo, Freud.
Enquanto a burguesia devora sonhos, pessoas negras e mulheres seguem apanhando e morrendo nessa mesma quarentena e nesse mesmo enclausuramento. A diferença é que seus corpos nunca estiveram livres, nem mesmo antes da quarentena. É com cinismo que escutamos sobre a repetição do engano das histéricas, afinal, como você mesmo afirmou, elas mentem. Elas mentem, e, no entanto, o número de violência doméstica, feminicídio e suicídio de mulheres aumentou consideravelmente nessa quarentena. Elas mentem, mas seus corpos mortos e marcados contam outra história que não chega aos ouvidos dos psicanalistas online de quarentena. O que teriam sonhado essas mulheres mortas, já que pouco dormiram em suas noites de clausura?
Quanto aos corpos negros, pesquisadores de questões de raça tentam desenvolver a teoria do psiquismo e seus impasses específicos da cultura negra, dialogando com teóricos decoloniais. Mas o número de analistas negros ainda é infimo em certas abordagens da psicanálise. Tendem a ser etiquetados como “aqueles [poucos] psicanalistas sociais”. Os corpos negros continuam morrendo mais do que nunca nessa quarentena. O que seus sonhos contariam?
Corpos de mortos sonham?
É, querido Freud. Todo mundo quer um pedaço do seu bolo. Todo mundo quer um sonho burguês pra construir a nova teoria brilhante que será estudada daqui a dez anos e fará a história de nossa época. Mas quem vai contar as histórias [mentirosas?] das nossas histéricas mortas e dos nossos corpos negros abatidos com um destino escravo impossível de sublimar?
Quem te escreve é apenas uma mulher preocupada com o destino da civilização e, sobretudo, com a máquina de devorar subjetividade que estamos testemunhando com a sua psicanálise. Teríamos nos tornando um dispositivo a favor da necropolitica? Análise online estaria sendo a atualização do nosso acordo de compromisso? Catálogo de sonhos burgueses estaria sendo nosso sintoma?
Muitas perguntas, pouca possibilidade de respostas. Mas acredito na sua psicanálise Freud, ainda que não me convença ate hoje com algumas partes dela. Sigo fazendo o que você mais me ensinou: elaborar questões e enfrentar o desconhecido. Acho que as pessoas com que mantenho o compromisso de escuta também estão fazendo o mesmo.
Seguimos sonhando.
Abraço de máscara,
Aline Accioly
