Luto finito

Primeiro veio o vazio. A casa, que era grande, foi invadida por um grande silêncio. Era comum eu estar lá sozinha durante a maior parte do dia. A noite, minha mãe se trancava no quarto e as vezes fumava escondido. Meu pai só chegava quando eu já estava dormindo e saia antes do meu horário de acordar.

Me lembro de faltar na escola vários dias pra ficar dormindo e não levar bronca. Eu tinha a sensação que ninguém estava prestando atenção. Depois da notícia da separação, que eu acho que descobri sozinha, meu pai saiu de casa. E ai veio a segunda fase em que cada um deles foi reconstruir suas vidas.

Me lembro da sensação de não ter lugar e de passar muito tempo com meu namorado babaca, uma pessoa que me pedia provas de amor o tempo todo. Mas essa é outra história.

E ai veio o terceiro tempo, o das brigas pela divisão dos bens. Presenciei poucas, duas ou três, uma gritaria na porta de casa, uma troca de acusações horríveis que eu só queria que acabasse logo. Mas essa fase durou muito tempo porque minha mãe falava muito sobre como se sentia injustiçada e meu pai também comentava sobre como as coisas não aconteciam como ele achava melhor.

Na última fase, que durou muitos anos, ficou aquela sensação estranha de observar duas pessoas que eram uma família ainda, mas que não sabiam lidar com as marcas de tantas mágoas que viveram.

Hoje meus pais são amigos e convivem de uma maneira que eu acho muito bonita, porque eles aprenderam a se respeitar e tentaram cicatrizar as mágoas que viveram. Mas se você perguntar, ambos ainda acham que a separação foi injusta. E não foi mesmo? Ninguém lida bem com nenhum tipo de separação. Elas sempre são injustas. Tem coisa mais injusta do que um amor que deu certo e acabou aos poucos? Sempre será triste e injusto viver a experiência de um amor que acaba.

Considero que a minha primeira experiência de luto finita aconteceu nesse processo de separação dos meus pais. E ela me marcou de maneiras que influenciaram diretamente a adolescente que fui e a adulta que sou.

Hoje olho para os meus filhos e me preocupo sobre a maneira como eles vão dar conta dessas experiências dos amores que acabam. Penso que gostaria de protegê-los das dores do vazio, mas recentemente descobri que é desse mesmo lugar que surgem as coisas mais lindas da vida também.

Hoje meu pai tem outra filha, Clarinha, fruto do novo casamento dele com outra mulher. E minha mãe exala felicidade nas milhares de viagens que ela adora fazer todo ano. Ou seja, de alguma maneira as melhores coisas da vida também surgem a partir de algumas coisas que acabam. No caso deles, não acabou. Transformou-se.

É preciso ter muita coragem para enfrentar tudo que acaba ou corremos o risco de viver uma vida de ódio silencioso baseado em um pacto sintomático de silêncio, destruição e ódio. No final das contas, a gente nunca entende por que um amor acaba e talvez isso seja a coisa mais perturbadora dos finais.

Hoje eu ainda não sei os motivos pelos quais meus pais se separaram, de verdade, mas entendi que a gente nunca consegue de fato explicar porque um amor acaba. Mas fico feliz de perceber que eles tiveram coragem para enfrentar tudo isso de frente. Morreram e germinaram diferente. Admiro a coragem e a decisão. Amor é exercício de transformação.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) luto finito. Em: www.alineaccioly.com.br

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