Desde pequena, escuto as pessoas dizendo que pra viver é necessário um certo nível de espiritualidade, crença ou fé. Nunca senti nada disso e muito menos achava sentido em nenhuma religião ou deus. Alguns anos depois, pensar na morte me dava certo alívio pra viver, já que, se tudo desse errado, sempre dava pra puxar a cordinha e dar um quit na angústia de viver. Sendo o tipo suicida, sempre foi muito fácil flertar com a total falta de sentido da vida e isso me permitiu, inclusive, ser muito boa no que eu faço, que é lidar com sofrimento e ajudar as pessoas a lidar com suas angústias e enlouquecimentos.
Minha narrativa passa por essa enorme obscuridade para que vocês possam estar chegar bem próximos do que foi a experiência do deserto pra mim. Nem que eu usasse todo vocabulário existente em nossa língua, eu jamais conseguiria descrever o que é estar no deserto. Sinto que tem algo a ver com a vida e o sentido que ela tem pra mim. E talvez essa tenha sido apenas a segunda vez que vivi algo tão intenso, a primeira em uma viagem.
No meio da imensidão do deserto, não há espaço para o atropelo, tudo pede calma. As longas distancias só poder ser percorridas lentamente e a altitude nos lembra o tempo todo o quanto somos humanos e frágeis. O coração bate acelerado e as vezes parece que vai parar se não for respeitado. É muita emoção e pouca razão. Você vai aprendendo a escutar os limites de vida, do seu corpo e descobrindo que a mortalidade só nos indica o excesso de vida que ainda existe antes desse momento chegar. E o deserto, ah, o deserto… Em sua imensidão, ele vai nos causando uma inquietação que cresce e diminui lentamente ao longo dos dias. Tudo é enorme e é possível entrar em contato com o mais irracional sobre ser um humano, estar vivo no mundo e girar dentro de um universo inesgotável. Esse choque de realidade, perceber o quanto somos apenas um resto no meio desse mundaréu de vida, não causa mal, ao contrário: nos permite sentir uma inquietação de vida, o pulsar de um corpo em existência, cheio de desejos e possibilidades. Ah, a vida… Essa coisa que parece tão sem sentido quando estamos sendo engolidos pelos arranha céus, pelo tempo é dinheiro, pelo capitalismo selvagem e suas urgências. Isso sim é angustiante, perceber que somos diariamente engolidos, apenas peças de uma maquina de dinheiro. Lá no deserto tudo é gigantesco, mas o deserto te abraça. Há um conforto em se perceber parte de um mundão tão lindo, onde o tempo é outro e não há necessidade de correr, produzir ou consumir: basta estar ali, ocupando um espaço no meio desse cenário de vida, vivendo e respirando lentamente.
Eu fui para o meio sem saber porque e ele me ensinou algo sobre uma vida sem angústia; descobri, no meio do nada, que existem mil maneiras de aprender a estar com você mesma e fazer parte do jogo da vida. Não sem muita dor, mal estar e trabalho. Foram horas intensas de dor física e emoções a flor da pele, e os esforços para viver são sentidos constantemente. Mas basta olhar em volta e, com um mundão tão lindo e acolhedor, não há outra saída se não respirar fundo, seguir para o próximo destino e viver.
O deserto está vivo, muito vivo em sua plenitude. O deserto que me habita encontrou um lugar no meio do Atacama, uma paz, um lugar pra pertencer. Os desertos se encontraram e só coisa boa pôde sair disso….
No deserto, o tempo é outro. Abriu-se um vão temporal e espacial na minha vida. Como eu disse, Nenhuma palavra será suficiente pra descrever o que foi vivido nesses seis dias de deserto. Algo dessa experiência está marcada pelo impossivel de dizer, mas há uma marca afetiva que fica e um efeito, um resto, que faz retornar algo que só posso chamar de vida…
Vivemos entre a incerteza da vida e a certeza da morte. Vivemos entre a alegria dos pequenos encontros e a angústia dos grandes vazios.
Eu fui pro Atacama, mas uma parte de mim não voltou mais. Ficou lá. Algo de estranho e familiar voltou no lugar.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) abraço desértico. Em: www.alineaccioly.com.br
