Cheguei na cozinha e tinha uma barata morta. Estava lá escondidinha atrás do armário que guarda os produtos de limpeza. Esse armário, anos antes, servia pra apoiar a cafeteria do meu ex e seus apetrechos de café. Hoje a cafeteira ainda está lá, agora minha, ao lado do bebedouro dado por meu pai, só que preenchida de produtos de limpeza e panos de chão.
Esse armário fica sempre com a porta entreaberta, está sempre guardando mais do que dá conta ou simplesmente não gosta de ficar sempre fechadinho, claustrofóbico. Fico impressionada como um armário pode aguentar tanta coisa ao mesmo tempo. E deixo ele se manter sempre semi aberto como parece ser sua atual vocação.
E lá restava a barata, de barriga pra cima, pequena e mortinha. Moro nesse apartamento desde 2016 e aqui nunca houve barata. Moro no terceiro andar e sempre imaginei que elas tivessem dificuldade de subir. Penso que poderia ser coisa dos gatos, que adoram pegar bichos mortos pra dentro de casa. Me lembro que meus gatos não saem de casa, não teriam como ter trazido a barata pra dentro. Talvez a tenham matado em sua tentativa de adentrar a casa.
Lá está a barata, na minha cozinha. Olho pra ela enquanto escrevo. Seu corpo morto resta apenas o mistério dos caminhos que percorreu pra morrer em minha casa.
Os enigmas da existência nos permitem criar as mais belas palavras, os mais longos textos, as mais inteligentes teorias. Mas no final das contas um dia estaremos também mortos, sendo olhados por terceiros, que se ocuparão de tomar nossos corpos como pretexto de escritas. Ou, no melhor dos casos, pensarão simplesmente nada, apenas nos recolhendo, jogando na privada e dando descarga.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) A barata não kafkiana. Em: www.alineaccioly.com.br
