(Sugiro que o texto referido no título seja lido antes do escrito abaixo. Caso você não tenha o texto, há uma leitura minha no link abaixo. São cerca de trinta minutos de leitura.)
A doença da morte é um texto que foi escrito por Marguerite Duras e publicado originalmente em 1983. O texto foi escrito com a possibilidade de ser encenado no teatro. Ao final do texto, a autora dá indicações de como a encenação poderia ser realizada.
Ao ator que interpretasse o homem, a indicação é que lesse o texto andando em volta da cama, único cenário no palco. Deitada na cama, a atriz que interpretasse a mulher diria seu texto de cabeça. Haveria, portanto, aquele do qual o texto fala mas que nunca seria representado. Mesmo quando ele se dirige a moça, é por intermédio do ator-leitor do texto. Logo, o aviso é de que o texto encena a solidão da mulher interpretada e a distância presentificada pelo leitor do drama que incorpora a tessitura lida do texto.
A indicação para a leitura do texto é priorizada por Duras. Para a escritora, nenhuma representação substitui o efeito de leitura do texto. Para que essa função não seja anulada pela encenação teatral, dois atores poderiam falar o texto como se o tivessem escrevendo, cada um em quartos separados. A solidão desencontrada que se escreve através desses personagens é o ponto crucial, o buraco delimitado pelo texto.
Quando li o texto pela primeira vez, não havia me cercado de nenhuma dessas instruções. Gosto de encontrar os textos de Duras desprevenida, desavisada. Como se meu não-saber pudesse intensificar os efeitos e as camadas que o texto produz no corpo. Comecei a ler o texto desconhecendo as indicações de leitura da autora (que só aparecem ao final do texto), mas sabia que ele teria que ser lido de uma vez só, sem intervalos.
Talvez por essa empolgação, tenha lido rápido, sem tanto fôlego. Com isso, desrespeitei a indicação de grandes espaços de silêncio entre as noites pagas – o silêncio da passagem do tempo. Devia ter desconfiado que o intervalo não era no tempo de encontro com o texto, pois é o que estrutura seu acontecimento. O intervalo é um dos elementos no texto.
Ao invés do barulho do mar, já que em Minas não tem mar, foi substituído pelo barulho real da casa e do entorno, que não desejei tirar. No meu território há o barulho da música ambiente, das máquinas funcionando na rotina de uma casa e o barulho da rua habitada por pessoas, bichos e carros. Essas são as alternâncias marítimas que por aqui se entremeiam. A cada território, sua sonoridade é incorporada com seus furos no ideal imaginário da cena.
Com o gesto metodológico apresentado, encontramos o corpo textual. A doença da morte foi escrita quando eu tinha apenas um ano de idade. No entanto, o texto apresenta as atemporais devastações amorosas que encontrei (e vocês também) nas não-relações que atravessei.
Cheguei ao território sexual e dele parti como quem aposta no amor sabendo que seu território é não-semelhante. Quase sempre o corpo erótico se torna receptáculo da cegueira sexual. A não-relação sexual satisfaz a solitária fantasia de um corpo que testemunha a impossibilidade do amor nas tramas do sexual. A passagem do tempo testemunha a distância vivida entre dois, ou melhor um a um. Quando o desejo de amor tem a morte sexual como resposta, nos percebemos diante de um espelho cujo buraco reflete o vazio de cada um de nós na busca por amor. Doença da morte.
Mas o que é amor quando não se estrutura como órgãos e orifícios da espécie ao qual estamos enjaulados? O que é o amor, quando uma mulher fica aprisionada no engodo de uma essência dita feminina delirando, sozinha, o encontro amoroso? O que é o amor, quando um homem, no engodo aprisionante de um instinto masculino, transa com seus fetiches e goza de suas fantasias, solitário? A doença é a desesperança, mas um corpo passa.
Só, um corpo passa. Mas a passagem leva em conta três elementos mínimos. O escrevente. O legente. O sexo do texto. Três elementos e muitos movimentos para compor outra erótica com o corpo. Como uma onda no mar quando encontra a praia e dali se escrevem furinhos na areia.
Re-iterando o eixo central por onde a escrita acontece, aquele do qual o texto fala, mas que nunca seria representado. Dele só experimentam os falantes, artesãos de seus fios tecidos.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) A doença da morte. Em: www.alineaccioly.com.br
