Enguiço

No livro A bolsa amarela, Raquel sonha em ser escritora. Por ser criança, não apenas não tem seu sonho levado a sério pelos adultos, como é motivo de chacota quando seus escritos escapam de seu controle e são lidos por seus irmãos. Para proteger seus sonhos impossíveis, que não cessam de engordar, Raquel passou a guardá-los em sua bolsa amarela, objeto descartado por sua tia rica. Nesse objeto-dejeto, Raquel esconde seus sonhos rejeitados por sua família. Uma coleção de rejeitos dos outros, mas uma coleção de sonhos para Raquel. 

Um dos bolsos da bolsa amarela vive enguiçando. Raquel faz uma gambiarra para não perder seu uso, colocando um fecho enferrujado para fechá-lo. O problema é que o fecho parece ter vida própria, decidindo quando funcionar e quando enguiçar à revelia de Raquel. Em geral, ela acha graça dessa traquinagem do fecho, mas de vez em quando passa aperto quando seu conteúdo fica em risco de ser descoberto por algum adulto curioso. 

Sempre achei interessante o modo como Raquel construiu sua relação com a bolsa e seus compartimentos. Quais sonhos escondia em quais compartimentos da bolsa e porque. Me chama atenção especialmente o estatuto desse fecho, um objeto com vontade própria que mora dentro do objeto-dejeto que Raquel usa para guardar suas vontades próprias que funcionam à revelia de seu desespero de ser descoberta. Os objetos de Raquel ganham vida tal qual suas vontades, independente do constrangimento que essas existências causam nela. É o fecho que decide quando quer abrir e quando quer permanecer fechado com as ideias guardadas dentro dele. 

Lembrei do enguiço que deixa Raquel muito brava quando voltei a escrever depois dos salvamentos dos textos vivos no texto anterior, Trapaça. No processo de salvá-los, dar-lhes uma última chance de respiro, enguicei o bolso das ideias novas guardadas. Parece que a maquinaria tá funcionando sem óleo, enferrujada. Por isso, inspirei um respiro com vocação de suspiro e respeitei que certos objetos escolhidos para guardar nossas vontades ainda não foram elevados à dignidade de coisa, eles tem seus funcionamentos próprios. É preciso ter uma paciência ativa para compreender quais estruturas discursivas, qual tempo e qual gesto de estilo de escrita eles demandam. Para isso, é preciso disposição. Diz-posição. Posição do dito que constrói a dimensão do dizer. É uma ética. Mas como é difícil mantê-la num mundo onde os dejetos são quase sempre causa de vergonha, descarte, desvalor quando pensadas através  do campo do outro.

Seguimos no tratamento do lixo. Porque a ecologia é nada mais do que uma replicação dos modos como lidamos com nossos objetos e nossas éticas nas relações de usufruto.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Enguiço. Em: www.alineaccioly.com.br

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