Dona Renê gostava de pássaros. Só pelo prazer próprio, Renê prendia todos eles em enormes gaiolas no terraço da sua casa. Todas as manhãs ela subia diversos lances de escadas e falava manhosa com seus bichinhos. Pegava eles na mão, um por um, e cantava sua cantoria de alegria e disciplina enquanto limpava-os, alimentava-os, acarinhava-os. Mas depois de um tempo repetindo esse ritual com cada um deles, prendia-os de volta em suas gaiolas. Alguns tinham sua jaula presidencial, isolados, um cantinho gradeado só deles. Outros dividiam o território com outros companheiros da mesma espécie. Quanto mais raro era o passarinho, mas isolado ele se tornava.
Às tardes, quando Ofélia visitava seu avô, subia as mesmas escadas que Dona Renê enfrentava todas as manhãs, por amor, e passava algumas horas escutando a cantoria dos passarinhos. Mas Ofélia não tinha o mesmo gosto de Dona Renê. Não sentia prazer em pegá-los com as mãos. Faltava-lhe jeito. Tinha medo de esmagá-los, apertando com força demais, ou libertá-los, caso tivesse força de menos. Assim, Ofélia não se interessava em tocá-los ou em tê-los, mas gostava de escutar suas cantorias tristes.
A barulheira caótica tornava-se uma sinfonia de solidão compartilhada. Essa cantoria tocava alguma coisa em seu coração. Sentia-se acompanhada no seu isolamento passarinheiro, mais do que quando estava lá embaixo escutando os adultos rirem de piadas sem graça. Mas em algum momento a mãe de Ofélia gritava lá de baixo, convocando-a para alguma coisa. Talvez não entendesse o que tanto a filha fazia lá em cima, sozinha com os passarinhos.
Ofélia também não sabia o que fazia lá em cima sozinha com os amores de Dona Renê. Mas já sabia que o canto irreplicável de um passarinho triste é mais belo do que o encanto apaixonado que o sufoca. Quanto mais amor, mais prisão, concluía. Talvez ela também desejasse cantar como os passarinhos, mas tinha medo da jaula que estava por vir assim que descobrissem seu (en)canto.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Passarinheira. Em: www.alineaccioly.com.br
Desconcerto de Lalíngua 