Havia apagado completamente a memória de um evento importante de escrita na minha pré-adolescência. Importante é exagero, porque trata menos da adjetivação do conteúdo vivido, mas da escolha precoce pela escrita como forma de traduzir meus afetos e endereçá-los. O acontecimento? Escrevi “te amo” mil vezes em diversas folhas de papel em branco.
Estava por volta dos meus doze anos e me apaixonei por um amigo na escola. O motivação da paixão é também motivo de curiosidade, porque foi o primeiro caso de encantamento pelo desenho da letra de alguém. O menino sentava na minha frente na sala de aula e nessa posição de vizinhança eu tive acesso privilegiado ao seu modo de estudar. A letra dele era feminina (ou a idéia que eu atribuía referencialmente à categoria feminina): desenhadinha, redondinha, esbelta, dançante. Era uma experiência estética e erótica.
Primeiro gostei da atenção que ele me dava, o que já me causava espanto advindo do que eu estava acostumada a viver no contato com o universo masculino. Depois, fiquei encantada pela letra, pelo traço feminino que se presentificava não apenas nos seus cadernos, mas no que eu lia do jeito dele de ser (ao que mais tarde compreendi que se tratava apenas de traços de introversão). Diante desses pontos, passei a passar o horário de lanche jogando pebolim com ele e outros meninos. Sempre gostei muito mais de jogos do que as chaturas comuns nos clubes das meninas.
Não me recordo ao certo de onde a ideia surgiu, mas lembro que todas as minhas colegas de sala passaram a acompanhar a novela diária da minha peregrinação de escrita. Os primeiros sintomas de tendinite no pulso e no cotovelo surgiram dessa primeira aventura, mesmo que eu ainda prefira atribuir, dois anos mais tarde, ao trabalho de escrita de TCC da faculdade do meu pai – instante em que o sintoma se cristalizou descaradamente.
Também não tenho registro memorial de quantos dias passei escrevendo a frase em repetição, mas recordo que em dias considerados bons, conseguia escrever “te amo” umas cem vezes. Eu anotava as matérias e no espaço de fala do professor, eu escrevia. Comecei tentando cem vezes. Achei fácil e aumentei mais uma centena. Quando percebi, colecionei cem repetições escritas.
Colei as folhas umas nas outras, resultando num rolo que imitava a função de um palimpsesto ou pergaminho. A forma de entrega era importante pra mim, pois carregava o peso da construção de um objeto valioso, manuscrito de uma mensagem a ser desenrolada, lida e interpretada pelo rapaz não apenas em seu conteúdo, mas em sua feitura. Lembro de mudar o estilo da letra e o modo de escrita pensando na leitura, em como despertar a curiosidade do leitor para percorrer as mil frases não-idênticas na forma.
Houve alvoroço na escola e pessoas de todas as salas acompanhavam meu trabalho de escrita se transformando naquele volume enorme de folhas cuidadosamente enroladas. Passei a ser acompanhada pelos olhares dos alunos, posto que chegava à escola com um volume enorme de papéis abarrotando o fichário e era vista indo embora com um volume cada vez maior.
No dia que entreguei o objeto ao rapaz, houve furdúncio, porque todo mundo queria assistir a entrega final e testemunhar a reação do presenteado. Ele, que já sabia dos rumores, ficou extremamente envergonhado com toda aquela cena. O menino era tímido, não gostava de chamar atenção para si daquela maneira. Por isso, recebeu educadamente o volume enrolado e retirou-se sem abrir ou investigar o material. Ele não mexeu, não abriu, não leu, não investigou. Apenas saiu carregando aquilo.
Não posso negar que ele havia sido muito educado comigo, até afetivo em alguns momentos. Mas seu interesse era por uma amizade. Ademais, ele gostava das adolescentes já corpudas, adiantadas à seu tempo desenvolvimental, peitudas e cheias de curvas aos doze anos. Gostava, também, das introspectivas, como eu era no começo de tudo isso, mas me transformei numa cena novelesca de Malhação, supondo que isso me faria mais desejável ao seus olhos. Terminei sendo acolhida pelas meninas. Elas me receberam de braços abertos a partir do vazio que ficou após a vivência de uma primeira frustração pública que passei.
Se considerar, com Jacques Lacan, que toda carta chega a seu destino, gosto dessa minha primeira cena de escrita amorosa. Ela se produziu em direção à uma letra feminina (que li no caderno do rapaz) e encontrou esse lugar. Afinal, foram as meninas que leram, receberam e acolheram minha demanda de amor. E fui descobrir, semanas depois, que a letra do rapaz era apenas um exercício de caligrafia copiada de uma amiga minha. O estilo da caligrafia era dela, que tinha dado aula de cópia de textos pra ele no semestre anterior, depois dele ter tirado nota baixa na aula de redação. Ele era apenas uma copista do estilo feminino para ser aprovado. Isso foi uma grande revelação pra mim, na época, e ainda ressoa hoje.
Considero, ainda, a função topológica desse objeto amoroso que criei em resposta ao que li equivocadamente naquela letra feminina do menino. O mais divertido de toda essa jornada foi a construção da carta/objeto passo a passo e, de bônus, fazer laço com as meninas e suas torcidas românticas, o que resultou em um espaço pra mim no clubinho delas, aquele que antes tinha dificuldade de participar. Passei a ter um lugar, aquela que escreve. Do esforço topológico passou uma letra feminina: a minha.
Só hoje, em dois mil e vinte e quatro, me lembrei dessa jornada de escrita em vão. Foi no vão do equívoco desejante que comecei a fundar meu estilo de almar. Através das letras, das cartas, da construção de objetos, do laço amoroso orientado pelo e para o feminino. E o cálculo neurótico, embaraçado, por vezes sintomático, mas que já contava mil vezes, em repetição, a insistência de um desejo que tentava passar mesmo ainda não se sabendo deslocado de seu tempo, espaço e orientação.
No more I love you’s
The language is leaving me
No more I love you’s
Changes are shifting outside the word
Debedobedododo Oh.
Annie Lennox
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Mil vezes. Em: www.alineaccioly.com.br
