Em Lição de escrita (Viver entre línguas), Sylvia Molloy faz uma pergunta vertiginosa: Em que língua sou? O tema é relevante na contemporaneidade. Trata-se da revelação de que nossos corpos respondem aos efeitos da colonização de uma língua (cultural/social), cada um a seu modo. Caetano Galindo (Latim em Pó) apresenta e desenvolve uma hipótese sobre a temática: que nosso português brasileiro é resultado das influências africanas, perdendo sua familiaridade originária com o português de Portugal e línguas européias. Fomos colonizados majoritariamente pela língua dos portugueses, mas subvertemos essa colonização deformando a língua do colonizador a tal ponto que ela porta, uma brasilidade que se tornou a marca do “português” hoje no mundo. Marca africana, que se diga, não mais europeia.
A hipótese de Galindo é fundamental para ampliar a reverberação do enigma escrito por Molloy: Em que língua sou? No entanto, as respostas que encontramos são provisórias, respondem apenas a uma parte do problema. Vamos ampliar a problemática na mesma cena metafórica de colonização. Em nosso território, fomos historicamente indígenas, pau-brasilienses. Logo, até a subversão operada pelas línguas africanas nas línguas europeias não deixa de ser uma marca de colonização. As operações de cada uma dessas línguas emaranhadas, articuladas e trançadas na invenção do brasileirês incide de modos absolutamente distintos nos nossos corpos. Sabemos desses importantes marcadores diferenciais e precisamos seguir nessas cesuras.
No entanto, em termos sociais, quaisquer línguas “originárias” produzem alienação, apagamento, rasuras diversas para serem incorporadas pelos corpos nascituros numa cultura. A língua africana subverteu as línguas européias que por sua vez engoliu nossas línguas indígenas de origem territorial. Temos ao menos três camadas complexas de articulação, alienação e subversão para fundar a marca brasileira de uma língua contemporânea. Quando alcançamos esse ponto, ainda temos outro impasse. Sabemos com mais precisão, atualmente, que não há uma língua indigena universal. No território nomeado como Brasil, nossos povos originários sempre foram falantes das mais variadas línguas, mas cercados e classificados a posteriori em um único grupo: “indigena”. Alguns desses povos recusam veementemente esses laços sociais, essa categorização universalizante e produtora de conjuntos falseados. Não se reconhecem na semelhança com outras tribos apenas pela proximidade territorial ou por semelhança de ritos e mitos.
Estes seres falantes que recusam o contato com a lógica social preponderante (que chamamos de universal, mas em algum momento foi apenas um universal forçado através de violência e poder), se agrupam à sua maneira isolada e permanecem falantes de línguas que não foram (e não serão) estudadas, transmitidas e muito menos traduzidas. Alguns habitantes dessas margens territoriais se ocupam do drama de extinção de algumas tribos e sonham em salvar essas línguas do apagamento cultural evolucionista. No entanto, nosso problema até esse ponto segue firme: qual é nossa língua originária? Ressoando mais uma vez Molloy: Em que língua sou?
Por último, aportamos com fôlego em outro impasse. A língua materna, nome que damos ao sistema de linguagem que nos insere no mundo através das normas e mitos culturais onde nascemos, é a língua que usualmente chamamos de originária. Trata-se da língua de nossa origem simbólica, que nos acolheu e nos transmitiu o dom da linguagem. Ela foi ensinada, disciplinando nosso corpo recém nascido, através de figuras familiares (agentes maternos e paternos) específicas, campos afetivos determinados. A língua materna é, portanto, nossa língua originária? Não seria esta língua apenas nossa primeira experiência de determinação necessária para tornamo-nos civilizados, familiarizados, sociais, humanos?
Partindo do pressuposto de que a língua é, sobretudo, uma experiência de constante determinação alienante a uma estrutura que nos antecede, poderíamos nos destacar em parte desta lógica (que chamamos de humana – seres de linguagem) para ousar subverter essa ordem para cavar um espaço de pertencimento do nosso corpo absolutamente singular, nãotodo falante de uma língua necessariamente estrangeira, indeterminavel? Teria sobrado um pedaço, um fragmento, resto do que não fomos para tornamo-nos humanos, seres de linguagem?
Essa passagem sutil entre sermos corpos falados e corpos falantes desenha uma margem, borda por onde uma cada corpo falante se manifesta singularmente no universo da linguagem. Haveríamos então de considerar que a língua suposta a um corpo falante não equivale a falação, mas a manifestações de um corpo que soam, ressoam e ecoam enigmaticamente nos instantes de tradução, quando são referidas a leituras e escutas universais. Estaríamos também correndo o risco de entrar em extinção, com nossas línguas não faladas, mas manifestadas por corpos que são lidos como sindrômicos, transtornados e deficitários? Em qual momento fomos convencidos a gostar das etiquetas referenciais adoecidas para nomear nossas línguas estrangeiras não compartilháveis? Para pertencer a grupos cujas experiências não se tornam menos solitárias?
Somos eternamente divididos, como já avisava Fernando Pessoa (Tabacaria), entre “a lealdade que devo à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro”. Nossa maior afinidade é, portanto, com essa divisão, com essa experiência de marginalidade, borda, entre. Chegamos ao ponto insolucionável do problema que investigamos. Precisamos da língua universal colonizadora no instante de nascimento para com ela entrar na partilha social e só então abrir espaço para inventar uma língua própria, manifestada pelo corpo que se constitui a partir dessa impossibilidade necessária e radical – entre línguas. Nas palavras de Molloy:
“Entramos na língua como quem plagia: ou, mais precisamente, como alguém que espia uma performance e depois a reproduz. (…) um exercício autobiográfico (…) porque inglês era língua de lembrança do meu pai. Traduzi-me”
Logo, somos (no mínimo) bilíngues por nascimento. Entramos na linguagem através da língua do nosso primeiro representante desta (seja ela qual for, sempre violenta, posto que necessariamente alienante) e a partir desse ponto aprendemos a falar e escrever “imitando literalmente a letra do outro nesta segunda língua que se tornará sua, quer dizer, uma das suas”. É um exercício de mimese. Mas depois é preciso criar fluência e domínio na língua própria, manifestada pelo corpo estranhamente. Língua que ainda não existe enquanto tal, não é anterior, mas ainda precisa ser inventada.
Para inventar uma língua que possa traduzir as estranhas manifestações do corpo singular, partimos do único lugar que temos – das lembranças de alienação da língua primeira/originária, seja ela qual for. Ou partimos da mistura dessas línguas, como é o caso do Brasil e tantos outros. A partir desse ponto, traduzimo-nos. Porque o bilíngue está permanentemente entre. “Estar entre” é fatalmente “seu modo de fala, de escrita, tênue vida”.
Percebo que não me assusto com o problema da colonização de corpos e línguas. Quando deslocamo-nos da posição de assombramento e medo do que nos habita as entranhas sem ter sido convidado, torna-se possível acolher essas imutáveis operações civilizatórias, com toda sua violência estrutural que elas portam, e tratá-las. Por tratamento, compreendo dar caminho à, transformar uma substância em outra propriedade.
O que segue assustador é a ausência de angústia/interrogação de certos corpos diante de suas condições de falados. Que não se incomodem, que não se estranhem nessas línguas colonizadoras, que não busquem ativamente as lacunas onde podem existir. Há algo do corpo afetado por essas linguagens que não consegue dizer-se nelas e essa fissura, quando descoberta, impele à busca de leitura e tradução. Há uma jornada para a construção de outras formas de tradução, composição de letras que se originam de um mesmo alfabeto, mas ganham novos usos quando articuladas e escritas distintamente. Afinal, qual é a língua que você tem que inventar para existir? Quais operações de tradução podem ser usadas para o seu aparecimento? Como a-cordar entre línguas?
Termino com essa passagem, do enigma escrito por Molloy para o enigma escrito por Accioly. Quando menos nos damos conta, achamos um cantinho e amarramos nosso fragmento. Assim vamos vivendo entre línguas, pertencendo apenas ao espaço entre elas: as passagens.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Acordar. Em: www.alineaccioly.com.br
