Máquina do tempo

Hoje é dia de equação. Gostaria de trabalhar a partir de três proposições + uma:

  1. Escritores escrevem para escritores
  2. A morte do autor implica que é o leitor quem imprime sua leitura no escrito
  3. O legente faz o sexo do texto
  4. O feminino, quando se escreve, produz sextos.

No curso do professor Ricardo Lísias, perseguimos a hipótese de que escritores escrevem para escritores. Para confirmar essa possibilidade, passamos pelos estudos das escritas autobiográficas tendo como ponto central “Em busca do tempo perdido” de Proust, e outros textos importantes do mesmo gênero literário para ampliar nosso campo de pesquisa. Mas, que gênero é esse? Autobiografia? Autoficção? Escritas de si? Nenhuma das anteriores?

A primeira vez que me aproximei dessa proposição, senti que ela nomeava algo que já sabia, mas ainda não tinha formulado. Sou ávida leitora de escritos em que os escritores revelam seus estilos e metodologias de escrita. Acrescento, ainda, a leitura de seus diários, espaço onde eles praticam a escrita diária que, por efeito, resulta numa abertura de portas a seus universos particulares. Por universo, me refiro aos seus modos de relação com o mundo, com os objetos e com seus corpos, nos permitindo ler e investigar o silencioso desenho de um estilo em pleno acontecimento. 

No grupo de estudos da professora Flávia Trocoli, investigamos uma proposta de Hèléne Cixous: o procedimento de escrita entremeada entre a pequena tragédia e a grande tragédia. A tragédia com t minúsculo é a que acontece nas nossas vidas particulares, são os acontecimentos no nosso micro universo que geram trauma e luto; a tragédia com T maiúsculo é a que acontece no mundo no mesmo instante em que nossa pequena tragédia se desenrola. Cixous nos convida à leitura desses dois planos para que ambos não se apaguem. Para que suportem a escrita mutuamente causada, promovendo, por procedimento, uma leitura escriturante do sujeito que escreve e do que virá a ler. 

Tal efeito de escrita é promovido pela leitura das relações entre essas duas camadas da tragédia, mas é também o registro escriturante de uma realidade que só se revela quando articulada. Portanto, é quando o eu do texto se destitui do lugar de escrita da verdade do acontecimento, produzindo uma verdade esburacada a ser lida no texto, que abre espaço para o advento do leitor escriturante. Este último lê o texto reconstituindo sua feitura e, portanto, torna-se compositor e co-escritor da cena de leitura que emerge, a partir de suas relações particulares com sua pequena e grande tragédia no instante de leitura. 

O leitor qualquer, para quem Caetano Galindo escreve sobre James Joyce, por exemplo, é este que lê a partir de um lugar único, insubstituível, e renova a vida do escrito tornando-o atemporal. Esse leitor, com sua leitura atuante, torna-se um novo escriturador, e por isso é renomeado por Maria Gabriela Llansol como legente. O legente torna-se responsável, portanto, por determinar temporariamente o sexo do texto. Por efeito, o texto perde sua determinação de gênero (literário), pois passa a ter funções literárias distintas a cada legência articulada e ressignificante do escrito. O texto litera a cada leitura. É pura borda, pois sobra apenas como um traço de estilo – que serve menos ao fechamento de sentidos do texto suposto original, mas pode ser usado como plataforma maleável para o nascimento de vários outros textos – que ficam à espera de serem lidos na lacuna dos significados determinados. 

Cixous propõe outro procedimento para transformar o sentido supostamente universal dos escritos. Ela nos convida a roubar o sentido das palavras e vergá-las, injetando atos subversivos de escritas que alterem irremediavelmente seus significados. Esses atos implicam, por exemplo, uma troca de letra ou uma alteração na imagem sonora da palavra, deformando, assim, sua expressão. Tal equacionamento matemático, como quem brinca com letras, é o que Cixous nomeia como o roubo da língua, produzindo o riso que revela o estado de graça nos quais esses sujeitos escriturantes se revelam, orientados por uma versão de feminino que não se enjaula na potência fálica da linguagem, produzem sextos. (Sextos – sexo do texto). Com esse procedimento, inventamos palavras e uma língua intraduzível que impele ao leitor a tornar-se, também, escritor de suas línguas intraduzíveis. O estatuto de feminino, nessa acepção, rompe com as determinações de gênero literário, deixando entrever a borda por onde diversos escritos circulam subversivamente a anos. 

Com isso, retornamos ao princípio, mas agora de outra maneira. Escritores escrevem para serem lidos por escritores. Mas escritores não são autores que falam de seus eus e são donos da verdade da experiência dos seus textos, brigando pelo lugar narcísico de fala. Essa função morre e dá lugar ao leitor escriturante, este que é o destinatário da carta enviada pelo escritor anterior, produzindo no segundo uma leitura que, por ser intraduzível, impele que esta se escreva a partir de uma língua própria, que precisa ser inventada, para resultar num texto que carrega a referência de onde surgiu, mas quase irreconhecível – incorporada. Assim, construímos um fio de letra que suporta as torções dos diversos estilos que daí se depreendem. Estes não fazem um conjunto, nem mesmo um pertencimento literário. Mas podem ser reconhecidos através do diálogo silencioso que operam, de letra a letra. 

Acho que essa minha escrita equacionaria está só começando. Tenho sentido a urgência de compartilhar, escrevendo a várias mãos. Tem sido interessante descobrir quais textos precisam ser escritos com outros textos, outros escritores. É um jeito absolutamente diferente de fazer comunidade. Essa é a aposta, afinal. E assim descubro que a gente viaja no tempo. Conversamos com pessoas vivas que estão mortas na nossa época de escriturante. Deixamos nossa letra viva para ser lida por outros viventes quando nossos corpos já tiverem terminado seu tempo de existência. É definitivamente um outro jeito de fazer comunidade. E, para minha surpresa, é meu jeitinho de inventar uma máquina de viagem no tempo. Quem diria. Agora não apenas descobri que humanos podem voar através das palavras, mas podem também viajar no tempo.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Máquina do tempo. Em: www.alineaccioly.com.br

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