Sopro de leitura

Ultimamente tenho desconfiado da minha memória ao recomendar livros para as pessoas. Em conversas e estudos, algo do assunto me remete a algum escrito que já li e automaticamente o recomendo para seguir o tema discutido. Porém, no instante em que referencio o material, sou assolada por uma desconfiança: a familiaridade que o texto apresenta com o assunto discutido é realmente do escrito ou da leitura escriturante que fiz do texto?

Leio e escrevo desde criancinha, então nunca tive problemas em saber onde se localizavam as referências dos textos recomendados, mesmo após décadas da primeiro leitura.  Logo, não é da memória especificamente que desconfio, mas da mistura que tem se emaranhado entre as leituras e a minha prática livre de escrita diária.

Mantive, durante a vida toda, o hábito de escrever resenhas críticas dos textos justamente para saber utilizá-los quando necessário, nas minhas escritas teóricas. No entanto, desde que me libertei dessa prática mimética quase plagiária de estilos, como afirmou Sylvia Malloy, todos meus escritos, mesmo quando traduzem de alguma forma a essencialidade do escrito de alguém, já se constróem através do meu estilo de escrita. Por isso, posteriormente, fico em dúvida sobre essa linha tênue entre o que é do texto lido e o que é resultado da minha incidência de leitura no novo texto escrito. 

Não que isso me incomode, porque compreendo estar habitando numa borda entre textos e era exatamente esse lugar que eu tanto gostaria de ocupar quando comecei a prática de escrita diária. Mas tem sido surpreendente não saber muito bem a qual texto referenciar – por não ter tanta clareza assim, nesse momento, quais efeitos textuais estão localizadas no texto originário da cadeia de escritas. Para isso, já penso em uma solução temporária: indicar o texto e minha leitura escriturada dele. A aposta é que a pessoa possa, por sua vez, produzir um passo a mais, dando uma terceira volta com sua própria leitura dessas duas escritas. 

Algumas pessoas já têm me dado retornos sobre suas impressões e efeitos dos meus textos, informalmente. Já sabia que a função de leitora era muito importante, agora compreendo essa relevância do lugar de quem é lida. Adoro colecionar os mais variados efeitos que as palavras podem produzir nos corpos falantes e desde já agradeço a todos vocês que me acompanham nessa jornada diária que vai durar todo ano de dois mil e vinte e quatro. Um escrito não voa sem o sopro do leitor!

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sopro de leitura. Em: www.alineaccioly.com.br

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