Hoje me senti como o procrastinador d’O Romance Luminoso. Tenho escrito incessantemente – como quem tem pressa para escrever antes de morrer. Mas basta que eu tenha uma data para parir um texto específico que a minha arte neurótica de negar o desejo dá as caras. Em homenagem ao sintoma, mas também ao seu desmonte, decidi retomar a leitura do livro que estava suspenso.
O livro tem quinhentas e cinquenta páginas e normalmente é lido em dez horas e trinta minutos. Ao acessar essas informações no kindle, tive uma crise de riso. Comecei a ler o romance luminoso em janeiro deste ano e até hoje não consegui terminar, porque ele é um livro feito para nos causar mal estar.
Nesse intervalo, comecei e terminei cerca de dez outros livros. Um deles, Memórias do Subsolo, li em três dias. Ou seja: cada livro produz um efeito singular no leitor e O Romance luminoso faz a gente sentir mal estar por alimentar nossos sintomas.
Em uma das entradas do diário, no romance, especificamente no dia vinte e cinco de abril de dois mil e um, um dos enigmas cotidianos do escritor chega ao fim. O cadáver morto de uma pomba desaparece, depois de meses agonizando no telhado da casa do vizinho. A resolução trouxe o escritor de volta ao registro diário depois de quase vinte dias ausente.
Como leitora, fui lançada para outro espaço-tempo: o ano de dois mil e vinte e um, dia vinte e dois de abril. Nesta data, aniversariei dezenove anos. Estou prestes a fazer quarenta e dois anos, ou seja, estamos falando de uma diferença de vinte e três anos. Esses dias uma amiga perguntou meu tempo de clínica, ao que respondi: dezoito anos. Ela deu uma assustada. Eu também costumo assustar quando falo em datas e números.
Em dois mil e um eu era apenas uma jovenzinha cursando psicologia, entre maternidades. E meu sintoma estava em plena cristalização, posto que a vida estruturada entre estudos e trabalho resultava em zero produção escrita. Restava, com sorte, o universo onírico e o exercício de constante elaboração dos sonhos e registros diários do sofrimento escondido a sete chaves.
Meu filho mais novo tem hoje dezoito anos. O mais velho tem vinte e cinco. Foram duas analistas e vinte anos entre análises. É por isso que eu descubro como a gente muda o passado com o futuro. Como quem acorda um dia, depois de derivar perdida no destino da escrita, como o escritor do romance luminoso, e tropeça num filho, num texto, no sintoma, e já se da conta que o universo não é mais o mesmo, muito menos o sintoma. O cadáver não está mais lá.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sintoma. Em: www.alineaccioly.com.br
