Ódio Manifesto

Talvez eu tenha aprendido primeiro a odiar. Minha mãe faz graça de como eu ficava de mal com ela enquanto ela me carregava nos braços. Consigo sentir a substância dessa raiva primitiva enquanto acesso essas memórias que não tenho registro imagético nem lembrança, recalcadas. Fiquei apenas com a narrativa contada e recontada pelas mulheres da minha família materna.

Na minha fantasia – montada em cima desses contos infantis de privação-, o deleite (a satisfação) me foi impedido porque minha mãe sempre teve uma relação frágil com seu corpo – seus bicos rachavam e sangravam porque ela não tinha furos suficientes nos mamilos para sair leite, só sangue. Parece uma piada lacaniana de mal gosto. Ela não tinha furos o suficiente… que loucura essa narrativa que ela mesma criou de si! Na minha fantasia, tratava-se apenas de um seio precário e eu provavelmente cresci achando tudo na minha mãe extremamente vulnerável. Eu tinha raiva. Eu tenho raiva. Da devastação feminina vivida entre mãe e filha num mundo que odeia mulheres. 

Para tratar meu ódio, o nome do pai chegou com a doutrina, a docilidade voluntária, com o amansamento religioso – ainda que não tivesse o peso divino escancarado. Desde cedo ele me ensinou a obedecer, a evitar conflito e a, sobretudo, cuidar da minha mãe. Quantas vezes me senti abandonada pelo meu pai, porque ele me convencia de que meu lugar era ao lado da minha mãe. Ela precisava de mim. Eu acreditava nessa doutrina enviesada. E quanto mais andávamos naquela subida infernal do morrão para nossa casa quente e pobre de periferia, mais eu odiava suas quedas. Várias vezes ela tropeçava e caia, porque era fisicamente desequilibrada, e eu caia com ela porque não soltamos as mãos. Eu tinha raiva dela, do buraco da rua, tinha raiva de mim. Meu pai passava ileso, Deus oculto da minha maior religião não assumida. A devoção à sua ordem de cuidado materno colocava em cena, secretamente um funcionamento sádico e silencioso – ficávamos as duas nessa cena incestuosa, em sacrifício, possibilitando a ele a satisfação heróica da imagem, santificado. 

Mas, veja. Tudo isso é minha leitura fantasmática de acontecimentos fragmentados atravessando disparadamente um corpo – o meu, que nada entendia, mas obedecia e sentia ódio. O ódio impossível de ser vivido virava sonho. Sonhava que a casa pegava fogo e todos morríamos. Sonhava que as bruxas finalmente chegavam para me buscar. Sonhava todo meu ódio traduzido em imagem onírica. Durante o dia, seguia a docilidade voluntária e quando transbordava de inquietação e dor, descontava tudo isso na falta de educação com a minha mãe. Com ela eu podia faltar.

Sim, eu aprendi primeiro a odiar. Aprendi que nós mulheres aguentamos a falta uma das outras. E também por isso nos odiamos, por esse testemunho. Escondi isso de mim mesma por mais de trinta anos. A revelação veio durante uma pergunta inquietante em análise, depois de pagar pelos meus pecados da raiva entregando meu corpo a homens que me odiavam, me estupravam, me batiam, dizendo palavras divinas e sacrificiais – você merece. Quanto mais eu odiava, mais me entregava em sacrifício para que a carne pagasse pelos pecados da alma e do desejo. Tudo em nome do pai. Tudo pelo sacrifício em nome de uma mãe que só existia para certo Deus. 

Minhas visceras apodreceram no meu corpo, um buraco foi escavado no meu ventre depois de algumas gestações e muitos abortos. Já não sabia mais se produzia sementes de vida ou podridão fecal de morte. Embrulhada, emaranhada, destaquei um pedaço do corpo sentindo-me finalmente louca o suficiente para pagar com uma libra de carne o preço de enlaçamento com o Outro. Um dia, quis correr dessa realidade assombrosa e cai. Perdi literalmente a conexão entre meu quadril e meu tronco. Fim. 

A passagem de uma realidade assombrosa à construção de uma saída, em análise, não acontece como nos romances leves ou nas novelas. Acontece sem jeitinho, tratando os impasses enquanto eles são vividos no âmago do corpo e das experiências. Vejo as transmissões de experiências de análise e tenho uma preguiça abissal daquelas histórias bonitinhas que contam sobre as experiências de análise. A desculpa é que o tratamento da análise permite que apenas alguns significantes passem, já tratados. Fica a cabo do leitor recriar o percurso não-dito. Que balela! Faço coro com Preciado: já passou da hora dos monstros saírem das jaulas, ao menos dos significantes ideais para escrever sobre as travessias de análise. 

Conheci recentemente um procedimento de escrita de Cixous, que indica a escrita da pequena tragédia em relação a grande tragédia. Como uma análise trata o ódio e a relação sintomática com a privação entre mulheres num mundo discursivo que nos ensina a odiar o feminino que nos habita? Paramos de nos odiar e deslocamos o ódio ao feminino nos corpos trans (como nos feminismos radicais)? Paramos de nos odiar e deslocamos o ódio para outras minorias? Como trabalhamos com a falta recoberta, nos corpos femininos, por uma privação proposital e elaborada para manter tais existências em rivalidade, autodestruição, enquanto nos tornamos presas frágeis para sermos devoradas por uma estrutura que supostamente nos cura de nossa loucura causada por essa mesma estrutura?

Até quando? Até quando as análises vão seguir tratando da pequena tragédia e escrevendo apenas sobre isso nas transmissões de análise, enquanto ardemos no fogo das grandes tragédias políticas e econômicas que nos fazem pedir a Deus para sermos mesmo bruxas? Não se trata de analisar o social em uma análise. Que se foda essa estrutura social inventada e padronizada as custas desse ódio autogerido.

Trata-se de ler os emaranhados dessas dimensões na construção das nossas respostas para dar conta de viver; trata-se de desarticular nossas satisfações sádicas nas pequenas diferenças entre existências femininas, para suportar existir sabendo que não existe Outro do Outro. Que estamos, a cada geração, relegadas a uma invenção que mude o rumo dessas narrativas entre femininos de ninguém – que vagueiam de geração em geração, ansiando por um território para repousar, crescer, nascer – e não apenas morrer.

Língua transmitida em silêncio, de mãe pra filha, forte o suficiente para sobreviver ao ódio de cada uma de nós, do ódio do mundo por nós, do ódio que brota e é alimentado desde sempre e que as vezes parece sem saída. Ódio pela nossa existência. Ódio de um corpo que sabe gestar, germinar, criar (e não só filhos, mas quaisquer sementes!) Meu Deus, que horror que tenhamos aprendido, principalmente, a odiar tanto nossa habilidade inventiva! 

Que possamos, a cada dia, renovar o estado de exílio – essa alteridade que habita nossas vísceras-, acolhendo o que nela é disruptivo, estrangeiro e assustador com um acalanto. Essa complexa prática que envolve a dor e a embala num ritmo lento, calmo, repetido e que melodicamente sussurra delicadamente um canto. Como cantava minha mãe para meus dois filhos, quando sentiam as primeiras dores da queda no corpo do mundo:

Va’, pensiero, sull’ali dorate

Va’, ti posa sui clivi, sui coll

Ove olezzano tepide e molli

L’aure dolci del suolo natal!

Del giordano le rive saluta

Di sionne le torri atterrate

O mia patria, sì bella e perduta!

O membranza sì cara e fatal!

Arpa d’or dei fatidici vati

Perché muta dal salice pendi?

Le memorie del petto riaccendi

Ci favella del tempo che fu!

O simile di solima ai fati

Traggi un suono di crudo lamento

O t’ispiri il Signore un concento

Che ne infonda al patire virtù

Che ne infonda al patire virtù

Al patire virtù!

Porque o feminino que me habita foi cantado, em parte, por ela, com seu maior tesouro – a palavra. Mas não apenas a palavra que supostamente partilha o dom dos sentidos universais. É a palavra em língua estrangeira, como partícula secreta que carrega o canto acolhedor da inquietude de viver, apesar de. Parte desse feminino foi também cantado por minha avó, que anda desaparecendo com Alzheimer. Esses sons secretos ressoaram no meu corpo insistentemente como o sopro do vento, reverberando acusticamente no espaço mais feminino que existe – incorporado como nossa língua nativa. Isso é amor. Em canto. Porque a voz intraduzível ressoa, abunda e a-calma. 

(Escrevi esse manifesto extremamente causada por uma cena que assisti no documentário “Três estranhos idênticos”. Um senhor de cerca de oitenta anos, pai do gêmeo que cometeu suicídio, está sentado sozinho e frágil na sua casa. Olhando para o nada no horizonte, ele fala ecolalicamente, com os olhos cheios de água: “acho que não consegui ensinar algo para ele sobre a vida”. Ele repete essa frase algumas vezes. Tardiamente, depois de ter disciplinado o rapaz militarmente durante toda a vida. A mãe já está morta. O filho já está morto. Ele ficou vivo). 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Ódio manifesto. Em: www.alineaccioly.com.br

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