Incontrolável

Queride leitore,

Venho trazer más notícias. Não existe desejo incontrolável. Sendo incontrolável, trata-se de gozo. Lá vem você com lacanês, queride leitore já deve estar pensando. É e não é. Deixa eu exercitar a tradução. Tendemos a confundir essas duas economias básicas – satisfação e gozo, prazer e desejo. Bom, o desejo não é desejo de um objeto, de uma realização que dê por terminado o impulso característica do desejo. O desejo é uma ética, portanto é um exercício, um estado que se experimenta ou não, de impulso à ação. Esse estado de existência desejante depende exclusivamente do movimento de desejo em prática, de sua economia de transformação em ato. Ou seja, o prazer vem do espaço, do intervalo temporal em que você experimenta a disposição prática de fazer funcionar movimento em atos, cuja direção ao desejo é orientada pelo próprio desejo enquanto essência negativa, causa primeira e última (transformada). Constantemente confundimos essa lógica (da ética do desejo) pelo campo da satisfação instintual, dos órgãos. A satisfação, por exemplo, que temos quando estamos com fome e comemos uma comida específica (e não qualquer comida, mas aquela que fantasiamos quando sentimos fome), quando realizamos a incorporação do que queríamos no encontro com esse objeto alucinado. Nesse campo, já não estamos mais no movimento da impulsão, mas no campo da ânsia, da urgência de devastação objetal. A satisfação, portanto, alucina, porque ela antecipa a cena de sua conclusão. Logo, a satisfação está sempre relacionada a uma fantasia e seus ideais morais e imaginários, que nos impulsionam a procurar o objeto criado por tal cena satisfatória em referência a um encontro anterior que já foi perdido. É a sede de devoração do objeto de satisfação, buscando uma plenitude na sua realização. Essa economia acontece, portanto, em três tempos – alucinar, realizar, satisfazer. É um circuito infinito que se retroalimenta. Na economia da satisfação, há o ideal de circuito completo. Por isso, nos tornamos dependente da repetição desse sistema. Só que a cada volta, a intensidade da satisfação diminui, impondo sempre a sensação de algo a mais para que siga realizando a sensação de completude. Assim as dependências compensatórias se instauram. Mas, voltando à economia do desejo, essa não é uma lógica em circuito. O desejo impõe um caminho, um trajeto, uma passagem que não leva ao mesmo ponto de origem. Divergente, a localização de prazer é no percurso, de forma que somos sempre surpreendidos por alguma novidade no ponto de acontecimento de prazer. É também uma condição da ética do desejo que este não se suporte por qualquer meio de realização. O impulso ligado a escavação de uma caminho para o escoamento do desejo costuma se constituir de uma forma muito singular ligada ao sujeito desejante, impondo um jeito, um traquejo que só pode ser desenhado por aquele corpo em questão. Logo, o desejo não é incontrolável, mas irreplicável. Algo no seu caminho nunca se repete. É o encontro com um prazer e, ao mesmo tempo, com o luto de seu acontecimento, que em instantes já será lembrado, posto que vivido e perdido.

Comecei essa carta avisando que ia trazer más notícias, mas acho que elas foram boas, afinal. A depender do seu próximo passo. 

Al.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Incontrolável. Em: www.alineaccioly.com.br

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