O episódio quarenta e seis – “Mexer no vespeiro“-, do podcast “Rádio Novelo Acontece” foi publicado dia cinco de outubro de dois mil e vinte e três. Só consegui escutá-lo hoje. Tenho o hábito de escutar Rádio desde criança, aprendi com minha avó materna. Enquanto fazia suas tarefas diária de dona de casa, o barulho ambiente era sintonizado com alguma rádio AM, cuja programação diária incluía leitura de horóscopo, notícias do dia, radionovelas, programa de entrevistas, dentre outros. Todos esse conteúdo da rádio era escutado com aquele barulhinho padrão de rádio, um certo ruído que vez ou outra mostrava que o sinal do rádio estava bom ou dessintonizado.
Mantive o hábito com o conteúdo de podcasts desde o princípio dessa prática, por volta dos anos dois mil. Os episódios da Rádio Novelo Acontece, no entanto, não estão nessa categoria. Não consigo apenas deixá-los tocando enquanto faço algo do serviço de dona de casa. Tal fato se dá porque todo material trabalhado em cada episódio da Rádio pode parecer bobo, sem ligação temática entre episódios, mas sempre me despertarm afetos misturados – surpresa, mal estar, tristeza, espanto. Demorei a descobrir que os episódios são ligados por um fio de estilo e ética. Todos os temas, os mais variados possíveis, de cada episódios sempre partem de uma narrativa ético-política que nem sempre fica escancarada. De uns tempos pra cá, no entanto, esse traço tem se tornado mais acentuado. Cada episódio remexe minhas entranhas e levo uns dias para elaborar essa desorientação proposital.
No episódio quarenta e seis, segundo ato – “Esqueletos no armário”-, o jornalista Thiago apresenta uma investigação que envolve os descendentes do Visconde do Rio Preto, que foi um dos grandes lucradores do tráfico de escravos no Brasil. As descendentes não são quaisquer pessoas, mas as três jornalistas que fundaram a Rádio Novelo. O interesse delas é participar do movimento politico atual em que as herdeiras das riquezas do tráfico negreiro possam romper o silêncio de seus privilégios e tomar partido nessa abertura histórica, revelando documentos e modus operandi de gerações de familiares que participaram diretamente desse lucro ou silenciosamente se beneficiando dele.
Mexer no vespeiro familiar é desde sempre uma prática povoada de tabus, relegada durante anos aos confessionários religiosos e aos consultórios dos analistas. No primeiro, a paz da confissão advém do pagamento de penitências, que variam de rituais de oração à peregrinação, ou até mesmo pagamento de serviços à comunidade religiosa. No segundo, a paz da elaboração vem da leitura dos privilégios que o sujeito se serve advindo desse passado e da tomada de posição deste diante do saber reconstruído. A “tomada de posição”, nesse caso, fica relegada aos aspectos íntimos da vida desse sujeito. Em muitos casos, não há um retorno dessa elaboração ao social. Podemos conjecturar diversas hipóteses para esse fim, mas vale dizer que tanto as igrejas como as instituições psicanalíticas sobrevivem economicamente graças a esses rituais de purificação e elaboração dos crimes e castigos – não apenas dos sujeitos, mas de seus ancestrais. Por isso, as reparações terminam por se realizar no nível pessoal e pouco dão a ver no nível comunitário. Não podemos esquecer que a igreja fez parcerias abissais com a economia escravagista e que a psicanalise fez parceria com a economia burguesa. A cada instituição, seu vespeiro.
De toda maneira, o ponto desse texto é o vespeiro, nossos vespeiros familiares e intransferíveis. Quais soluções de compromisso inventamos para que eles sigam habitáveis por nossos corpos e o que pagamos para não romper com essas estruturas e encontrar saídas. A minha história é bem menos importante historicamente do que essa das irmãs na Radio Novelo. Talvez a sua também seja tão irrelevante quanto a minha. No entanto, são as pequenas diferenças que tendem a passar silenciadas e pouco remexidas, justamente pela falta aparente de relevância social. Menciono, por exemplo, histórias familiares de corrupção do imposto de renda na receita federal, casos de propina política que beneficiam acordos de atendimento de saúde para parentes não abastados, vizinhos que fazem gato de energia… toda sorte de crimes que são justificados a partir das lógicas econômicas de precariedade, pobreza e falta de assistência social do estado. Aprendemos que fazemos justiça com as próprias mãos. No entanto, fazemos nossos pequenos crimes ou testemunhamos silenciosamente o pequeno crime de alguém muito próximo, porque incorporamos esse traço supostamente natura de nossa história.
Seguimos confessando esses pequenos delitos do nosso entorno nas igrejas, elaborando esses acontecimentos nos consultórios dos analistas, mas a estrutura segue firme, de gerações em gerações com seus não ditos. É uma irmã que não tem coragem de contar a outra que seu pai era pedófilo. É um irmão que não tem coragem de contar aos irmãos que seu tio era pedófilo. É uma esposa que não sabe o que fazer com o alcoolismo discreto do marido. É uma sobrinha que finge não ver o tio dormindo com a filha na mesma cama aos sete anos de idade. Nossos vespeiros diários. Nossa renovação silenciosa dos tabus que sustentam a noção de família bem viva, custe o que custar.
O conceito de família escreve um impossível, afinal. Foi um conceito inventado para constituição de poderio econômico, levando em conta os laços sanguíneas. A historia de amor foi um toque quase sádico da igreja para selar esse acordo, afinal, aprendemos primeiro a odiar, já dizia Freud. Não somos uma familia, na maior parte das vezes. Tornamo-nos familiares com o horror dos nossos parentes e com as soluções que criamos para silenciar esse horror em nós, de modo que possamos seguir fazendo parte desse conglomerado “afetivo”. O que é amor, afinal? É infamiliar, definitivamente. Portanto, trata-se de como nos tornamos comunitários com o infamiliar jeito de sobreviver dos que tem coragem de assumir tal posição incomoda. Talvez assim o amor se invente, transitoriamente.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Vespeiro. Em: www.alineaccioly.com.br
