Maternidade

Quando fiquei grávida aos dezesseis anos, não existia internet. Nós acessávamos informações através de bibliotecas públicas, enciclopédias emprestadas, programas de rádio, televisão e revistas compradas em bancas de jornais.

Quando tinha cerca de treze anos comecei a trabalhar e com esse dinheiro comprava revistas Querida, as vezes Capricho e as vezes gostava só de comprar o jornal de domingo mesmo. Por isso, quando fiquei grávida, não sabia para quem fazer perguntas assustadoras de serem ditas em alto e bom som. 

Os adultos a minha volta se dividiam entre os horrorizados (tadinha, tão jovem), entre os punitivos (quem mandou transar tão cedo) e os imperativos (agora vai aprender a dar conta da vida). Nenhum deles, repito, nenhum deles perguntou se eu queria ter a criança e se eu precisa perguntar alguma coisa.

As revistas adolescentes não falavam de gravidez, então tive que procurar as revistas indicadas para mamães e livros de literatura que abordavam a gravidez na adolescência. 

Na minha ingenuidade de dezesseis anos, fiz a minha tarefa de casa que ninguém pediu. Montei uma pasta de plástico com o passo a passo da gravidez ao primeiro ano do bebe, com recortes e colagem das varias revistas tematicas.

A pastinha ficou uma graça. Indicava os sinais do que eu sentia mês a mês, de como estaria a evolução do bebe, e esse passo a passo chegava até o primeiro ano da criança. Eu estudava essa pastinha como quem tinha construído a própria metodologia de transformação daquela acontecimento precoce em minha vida, mas com toda boa vontade que uma estudante nerd pode ter.

Eu lia e relia aquela pasta, semana a semana, acalmando meu coração e lendo cada estranhamento na transformação do meu corpo. Em nove meses, passei de um menina magrela a gestante barriguda. Eu nunca soube o que teria sido o tal desabrochar como mulher da adolescência para a vida adulta. Passei de adolescente para mãe, direto. 

Me lembro da minha calma diante do buraco de angústia que me corroía silenciosamente. Beirava a melancolia. Mas tinha uma curiosidade pela sensação de talvez não me sentir mais sozinha. Pensava em como seria ler e cantar para aquela criança. Sonhava com elementos plausíveis dentro do meu universo. Não falava com absolutamente ninguém sobre o assunto, porque os adultos estavam histéricos demais competindo entre si sobre quem acertaria o bingo do que aconteceria comigo depois do parto. 

Voltando para os dias atuais, uma querida amiga está grávida de trigêmeos. Toda semana ela posta a preparação para o nascimento das crianças. Os exames, as idas ao médico, a compra das roupinhas, dos eletrônicos, das mamadeiras e fraldas. Hoje ela postou alguns vídeos mostrando o quarto das crianças e tudo que já está disponível para a chegada delas e para o acolhimento da mamãe recém parida.

Olhei atentamente para cada objeto apresentado por ela e fui invadida por uma tristeza muito grande. Aos dezesseis anos, eu não sabia de nada da vida. E as pessoas do meu entorno achavam que sabiam alguma coisa. O que elas sabiam eram as historias de mulheres que ficam grávidas sem planejamento algum e se esfolam pra dar conta. No meu entorno, ninguém podia me contar uma história como a minha amiga conta hoje no seu canal de Instagram. Essa não era minha realidade. E mal sabia eu, naquela época, que as reportagens maravilhosas que me ajudaram a montar uma pastinha de informações acolhedoras sobre o que estava por vir, não serviriam para me explicar porque uma criança nasce com deficiência, porque um parto é longo e violento, porque a depressão invade a vida de uma menina nessas condições. 

Fiquei triste porque sinto que não tive muita chance de ter sido diferente, mesmo que eu tivesse alguma íntima vontade dentro de mim que fosse. Na série estrelada por Claire Danes, Fleischman is in trouble, o protagonista passa grande parte dos episódios mal falando da mãe de seus filhos, que abandonou-os após a separação. Demoramos muito tempo pra descobrir que essa mulher estava surtada, mas não pela separação. Ela nunca teve uma chance real de descobrir a maternidade com seus filhos. Em uma das cenas, assistimos a violência obstrética que ela sofre silenciosamente no parto e, quase dez anos depois, consegue dizer que nunca mais ela foi a mesma. Eu nunca tive uma chance, diz ela.

Hoje, quando vejo a chance que muitas mulheres tem para viver o desejo de maternidade de outra forma, fico triste e faço luto pelo que não tive nenhuma chance. Mas depois de muitos anos de análise, perdoo os ideais e os desejos que não tive chance alguma de tentar transformar. Acolho a menina desorientada que fui aos dezesseis anos. 

E, cada vez mais, compreendo que não existe chance alguma para milhares de nós, ainda hoje, num mundo em que herdeiros continuam sendo os mais ricos do mundo enquanto gerações (Revista Forbes desse mês) e gerações de famílias, como as de onde vim, seguem sem recursos econômicos algum para viver com dignidade seus próprios sonhos. Enquanto houver essa disparidade econômica, encontraremos outras Alines como eu, tão perdidas quanto, mesmo que já tenhamos evoluída a passos largos no acesso a informaçao e a tecnologia.

Acho que fiquei triste lembrando da minha história, mas fiquei tocada também pela larga disparidade econômica que torna a vida de tanta gente bem mais possível de ser vivida. Não tem final bom para esse texto. Minha avó nasceu pobre, cresceu pobre, teve quatro filhos pobre, está envelhecendo pobre e vai morrer pobre. Ela ajudou a cuidar de varias crianças, netos ou apenas conhecidos, na vila onde morava.

A minha pasta continua guardada no armário. Foi a única coisa que guardei daquela época. Talvez seja pelo carinho que ainda tenho por aquela menina de dezesseis anos que sabia o caos que estava por vir, mas aproveitou os meses de melancolia e gestação para se despedir da arte. A pasta foi feita de recorte e colagem. E, naquela época, eu tinha o desejo secreto de ser jornalista. Ficou tudo lá, marcado secretamente naquela pasta.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Maternidade Em: www.alineaccioly.com.br

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