Riqueza

Ontem vários jornais publicaram notícias sobre a lista atualizada das pessoas mais ricas do mundo. Na lista da revista Forbes, chama atenção que desde 2009 todos os bilionários da lista que possuem menos de trinta anos são herdeiros. Ou seja, dos vinte e cinco bilionários com trinta e três anos de idade, apenas sete deles “construíram” suas riquezas. Os outros todos herdaram o patrimônio da família por transferencia de riqueza.

É preciso lembrar que a predominância de herdeiros entre os bilionários mais jovens evidencia a abissal desigualdade social arraigada na nossa sociedade. Diante dessa notícia, uma outra pesquisa realizada em 2016 voltou a circular. O estudo relembra que as famílias mais ricas de Florença são as mesmas a seiscentos anos. Tais dados também corroboram para a transferência de riqueza e produção de herdeiros.  

Publiquei, essa semana, um texto sobre meu mal estar ao assistir o processo de preparação gestacional de uma conhecida. Depois de publicar o texto, senti diversos estados vertiginosos que traduziam a moral cultural que somos disciplinados a ter. Em outros termos, senti culpa e até vergonha de escrever sobre a disparidade socio-econômica e como ela não é publicamente discutida, mantida como tabu, porque envolve toda nossa noção cultural, moral e religiosa de tabus.

Por isso, volto ao tema, para enfrentá-lo. Não é que eu sinta que todas as gestantes devessem sofrer os impactos da desistência social em seus processos de maternagem, pelo contrário. O impacto que senti ao acompanhar um excelente processo preparatório e acolhedor de uma gestação foi o de indignação com o fato de que hoje, no Brasil a maioria das gestantes não chega nem perto desse privilegio. A palavra já causa mal estar – considerar um privilegio as condições mínimas para que uma mãe e seus bebês sejam bem recebidos no mundo. 

O mal estar ganha fôlego ao destrinchar que a condição de privilégio para uma boa maternagem advém da disparidade econômica que é alimentada pelo modo como vivemos a noção de democracia a muitos anos. Os números divulgados pela revista Forbes e por tantas outras pesquisas sobre o tema, são apenas um pedaço do iceberg. Na minha família, por exemplo, fui uma entre várias a sofrer violência obstétrica. Minha mãe quase morreu no parto, largada num quartinho de hospital durante horas e eu poderia passar horas puxando esse fio histórico de desamparo de mães e crianças advindas de um lugar periférico. E sei que a minha história nem chega aos pés das inúmeras desgraças vividas por tantas outras mulheres em crianças em regiões ainda mais abandonadas pelo Estado. 

Há um aspecto do funcionamento perverso social que é dificil de enfrentar. Na cena perversa, há sempre um desmentido em jogo. Há um acontecimento social que dá corpo à injustiça social e nele somos convidados a desmentir o impacto do absurdo em questão, envergonhados e constrangidos pelos afetos religiosos que condenam nossa leitura como se o problema estivesse em nós. Somos convidados a testemunhar absurdos em silêncio e qualquer leitura problematizadora é transformada em culpa, vergonha, inveja. Por isso a questão da riqueza e da disparidade econômica produz todo tipo de reação de mal estar. 

Nos últimos anos, ao invés de enfrentarmos essa injustiça histórica acerca da distribuição de riquezas na sociedade, passamos a incentivar que as pessoas enriqueçam, aprendendo diversas técnicas de investimento. Meus ímpetos agressivos transbordam quando escuto alguém contar seu caso de sucesso com um investimento. Não existe sorte, muito menos lucro sem corpos morrendo em algum lugar para mantê-los.

Hoje em dia, onde quer que você vá, as pessoas não param de falar de investimentos, de modos de ficarem ricos. Estamos sendo convencidos de que todos podem enriquecer e enquanto ficamos enganados por essa universalidade do acesso econômico através da lógica meritocrático, os ricos seguem mais ricos do que nunca, os herdeiros seguem herdeiros sem saber nada sobre matemática, economia e investimentos. O desmentido continua circulando livremente diante de nossos constrangimentos morais. 

Não há milagre. Enriquecer sempre implica que alguns corpos pagaram o preço do milagre, direta ou indiretamente. E eu não to falando de você, classe média, que trabalha feito um condenado para pagar seu iphone. Descansa militante. Tô falando dos ultraricos, cujo dinheiro poderia acabar com a fome, com o desemprego, com as altas taxas e mortalidade infantil, com os bons partos de milhares de gestantes desamparadas. Mas você, eu, que ficamos entre os muito pobres e os muitos ricos, nós contribuímos para desmentir essa realidade. Por que a gente também sonha com a ascensão social. Então nós também desmentimos, sutilmente, a perversão social econômica ou apenas testemunhamos em silêncio.

No episódio do Visconde, da Rádio Novelo, a questão passa por esse incomodo. O que os herdeiros fazem com a realidade ao qual foram presenteados? Alguns deles se tornam grandes contribuidores para causas humanitárias e sociais. Outros doam parte de suas riquezas para iniciativas públicas envolvidas em transformar essa realidade. Mas nenhum deles abdica dos privilégios que custaram gerações de corpos pobres. No final, diante do horror que produz riquezas, desmentimos. Desviamos. Não sabemos o que fazer. Até porque a saída não é individual, mas conta com cada um. O problema da pobreza é responsabilidade dos ricos. Mas não com a saída religiosa de caridade. Afinal, o que você faz com os privilégios que herda de sua família? Que saídas você produz para sua parte nesse mal estar?

Da nossa parte, cabe ao menos mudarmos nossos sonhos disciplinados. Para de sonhar em ser rico. O filme Zona de Interesse aborda diretamente o custo da riqueza. Vamos sonhar em viver bem. Mas esse bem não é material. Implica em poder dormir sem ser aterrorizado pelo som dos gritos dos corpos que morrem para uma idéia ilusória de bem econômico.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Riqueza. Em: www.alineaccioly.com.br

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