Vivemos em tempos onde a submissão é doce como um refrigerante e a liberdade é demasiadamente amarga. Lembrei dessa proposição de Étienne de La Boétie depois de assistir ao filme Glória. O discurso da servidão voluntária é um texto clássico sobre a liberdade. Ao investigar o estranho sintagma “servidão voluntária”, os passos do texto não nos guiam no caminho da culpa geralmente imputada a vitima de violências de poder, mas destrincha a contradição moral que habita cada um de nós, tornando-nos constantemente subservientes desse traço moral que se torna a morada do opressor.
La Boétie recusa a ideia de uma escravidão natural e demonstra como a servidão é resultado de um longo processo social de dominação do homem pelo homem. Para La Boétie, a obediência voluntária de uma massa de pessoas é um vício de pusilanimidade. Não se trata de covardia, mas uma negação construída pelo homem que se torna constantemente relegada ao indizível, por seu horror. Por sermos seres desejantes e livres, nos dividimos entre os audaciosos que não temem o perigo do desejo, os prudentes que não recusam enfrentar o sofrimento e os medrosos e aturdidos que nem sabem suportar o mal ou recuperar o bem, limitam-se a desejar vagamente. Somente o desejo explica a falência da ordem natural da espécie – é pelo desejo, e exclusivamente por ele, que perdemos a liberdade.
Em outros termos, desejar implica uma decisão de submissão ao aparecimento do desejo com sua insistência em fazer-se desejo à revelia de qualquer impossibilidade de sua realização. Diante disso, o homem sabe que há algo em sua lógica existencial que não domina cem por cento. Assim, pelo promessa de realização dos nossos desejos mais íntimos e impossíveis, voluntarismo-nos a modos fantasiosos de realização e por esse custo, pagamos com a liberdade.
Nesse aspecto, La Boétie ironiza, lembrando que até os animais lutam contra sua dominação pelo homem. Até mesmo os bois choram e as aves lamentam em suas gaiolas. Os animais não se acostumam e reagem, manifestando sua contrariedade. Nós, humanos, buscamos por remédios e tratamentos que nos ajudem a seguir cada vez mais servis e dóceis, mantendo a troca de liberdade pela ilusão de realização de um desejo que já nem sabemos mais se realmente é nosso.
Segundo La Boétie, todos os homens que se deixam assujeitar assim o fazem por coerção ou engano. No caso do engano, não se trata de serem iludidos por outros, pois são eles que iludem a si mesmos. Quando Bolsonaro prometeu a garantia de certos privilégios perdidos a uma pequena parte da sociedade, não foi ela o enganador de toda essa massa, mas a própria tirania que habitava cada uma dessas pessoas que formaram seu exército voluntário.
Somos ensinados, por força do hábito, a servir. E passamos anos de nossas vidas nos comportando conforme fomos ensinados a ser, de acordo com essas regras morais que nos foram transmitidas. Confundimos desejo com dever. Esse cambio se torna um conjunto de hábitos que parecem naturais, depois de décadas de transmissão e exercício. É como acontece com os mais belos cavalos, que inicialmente reagem e mordem, mas depois se esquecem de se revoltar contra a sela e passam, em pouco tempo, a exibir todos os enfeites e adereços que lhes põem em cima, orgulhosos com suas armaduras de combate.
Exibimos todos os dias, nas redes sociais, nossas lindas selas de combate, marca da nossa servidão voluntária primordial. Cada uma é mais bonita que a outra, afinal, há estética na estrutura escravagista. Por isso, a liberdade tem gosto de guarda-chuva. Qual é a bela sela que te mantém voluntariamente servindo? Que gosto tem sua liberdade?
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Até os bois choram. Em: www.alineaccioly.com.br
