O que é vertigem? Medo de cair? Mas por que temos vertigem num mirante cercado por uma cerca sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio de baixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados. O trecho é de Milan Kundera e nos orienta nas investigações de nossos medos e vertigens cotidianas.
Catherine Millot é uma escritora que testemunha sua decisão por uma vida de enfrentamento de abismos ordinários. Para ela, enfrentar uma vida desejante é estar sempre caminhando a beira do abismo, ousando mergulhar de um abismo ao próximo. Ter estado em um dia sem defesa e sem reserva no mundo, tendo renunciado a todo abrigo, tão vazio quanto o vazio onde todas as coisas se mantêm, livres e sem fronteiras, é uma experiencia inesquecívil. É também uma experiência humana fundamental que ensona a encontrar o próprio chão na ausência de chão, a se apoiar na ausência de qualquer apoio, a retomar o próprio ser no ponto extremo de sua aniquilação.
As palavras de Millot e de Kundera escrevem sobre as vivências radicais ligadas a sensação de perda de si e dissolução do eu. Essas experiências oscilam entre angústia e desamparo profundos e o vazio sereno presente apenas em alguns instantes da vida, as vezes apenas na infância. A maioria das pessoas procuram analises para saber o que fazer com a vacância ou, como costumam nomear, a paz.
Há também um outro nome para essa experiência, o amor. Clarice Lispector, em A paixão segundo GH, considera o amor como o que não tem senão aquilo que se sente – porque até a palavra amor é um objeto empoeirado. Essa experiência de amor, paz, vacância comportam um núcleo vazio referente aos instantes em que nossa experiencia de si é dissolvida, de modo que o objeto suposto ao amor é poeira, desprendido.
Jacques Lacan costumava afirmar que o advento do sujeito deixa um sinal de sua própria abolição, denominada de novação. Diante do abismo, abismado, o sujeito age e se lança ao novo. Liberta-se da imagem de si mesmo que tampona o desejo como puro estado de movimento constante. Ali, só existe em queda. Paz. Amor. Vertigem.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Vertigem. Em: www.alineaccioly.com.br
