Cena de escrita I

Acabei de sair de uma reunião de escrita sem saber aonde o texto vai dar. Esse é um dos prazeres do texto quando escrevemos a quatro mãos. Raro prazer, posso afirmar. Depois de duas décadas dedicada aos estudos, a leitura e a escrita, consigo contar com apenas os dedos de uma mão o número de pessoas que curte escrever conjuntamente, mantendo a distinção entre línguas.

Achei ousada minha convocatória ao envio de escritas por vocês, leitores. Mas considero a leitura um ofício escriturante – trabalhoso e também prazeroso. Ao contrário do que costumava fantasiar, as parcerias de escrita mais profícuas não foram com amigos ou parceiros diretos de trabalho. Conhecer o texto enquanto ele se escreve não é para muitos, porque envolve trabalhar com a dissolução do eu e a vulnerabilidade de não saber o destino enquanto o texto se liberta para escrever-se. 

É o texto por vir que faz uso das nossas mãos escriturantes, se assim o deixarmos aparecer. Isso me faz lembrar de um trecho escrito por Maurice Blanchot em O livro por vir. Ao estudar Werther, de Goethe, Blanchot nota a certeza do jovem, em sua paixão arrebatadora e impossível, que “não haverá chance de acabar bem”. Suicida, Werther experimentava a paixão como quem experimenta a morte do desejo diante de sua impossibilidade de realização. No entanto, há um giro que lhe irrompe com uma certeza contrária, a certa altura do livro. De que ele não estava destinado a soçobrar e por isso se permitiu experimentar potências demoníacas, em seu termos, que o fizeram secretamente cessar de acreditar em sua decadência. 

A estranheza do giro wertheriano sobre o fim situa-se no misterioso evento que foi responsável pelo  intercâmbio entre as duas certezas anteriores ao ato final. Sua mudança de atitude promoveu nele uma economia de escrita que orientava-se pela prudência, atenção e aproveitamento de tempo que não ousava colocar em risco a felicidade de encerrar o destino final de sua escrita íntima. Blanchot chama esse fenômeno goethiano de uma anomalia.

A anomalia está no sensação de ter encontrado salvação logo depois de experimentar a ruína, que constata o intervalo temporal por onde Werther faz um pacto com o fim, mas através de sua escrita. A certeza de triunfar, na escrita, advinha justamente da certeza de sua impotência diante de seu perecimento. Para nos, leitores, no entanto, o essencial dessa passagem permanece obscuro. 

Rilke interrogava o escritor desalojado do eu: “Entre em você mesmo, busque a necessidade que o faz escrever. A necessidade encontrada é sincera?” Se a escrita for precisa, como navegar era preciso para Fernando Pessoa, então ela se torna um mandato. Diante dessa imposição, o escritor não poderia se opor, segundo sua natureza, assumindo o mandato que foi conferido por ninguém a não ser por uma força interna a ele mesmo. Nessa contradição, escreve-se.

Logo, nem mesmo Goethe, emprestando sua angústia a Werther, pôde reservar a liberdade de sua vida à obra que o pressentia. Assim como ninguém pode decidir consagrar-se através de sua obra, muito menos salvaguardar-se dela. É preciso manter uma certa negligencia despreocupada com um suposto objetivo que leva um escritor ao exercício de escrita. 

A exigência da escrita seria, portanto, de uma intimidade expressa. O escritor tem algo a dizer e esse não-dito por vir atormenta-o, força-se criativa e impetuosamente nas palavras à revelia e ao desconhecimento da razão. A escrita manifesta-se através do corpo que escreve. O acontecimento literário é, portanto, irredutível em sua forma e substância. Sua essência permanece inacessível até mesmo para o escritor, que de tempos em tempos confronta-se com a a causa de sua desorientação durante a escrita em percurso. Encontra-se perdido, questiona-se onde vai parar. É esse mesmo ímpeto demoníaco que não permitiu a Goethe soçobrar e mesmo perdido, escrever até o fim o destino de seu Werther. 

Ao escrever, experimentamos a despossessão, a morte da coisa na palavra, o cambalear incessante dos passos entre palavras, mesmo quando estas são orientadas por um desejo de passagem e transformação. Cambalemos, como bêbados entre línguas, desenhando tortuosamente o caminho do nosso fim… no texto. Até o próximo.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Cena de escrita I. Em: www.alineaccioly.com.br

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