Ismail, eu e você

Como é a sensação de ler uma carta enviada por alguém muito querido depois dessa pessoa ter acabado de morrer? Como é reencontrar as correspondências trocadas durante meses com alguém que se ama muito e que já morreu? Como é tentar lembrar a sensação sentida na primeira leitura viva, agora perdida?

No curta-metragem The Red Sea makes me wanna cry, acompanhamos a jornada de uma personagem reencontrando as memórias que guardou do marido, através de cartas, no mesmo instante em que viaja para os destinos de onde ele as escreveu e enviou quando estava vivo.

Todas imagens do filme são enevoadas, propositalmente. A imperfeição na nitidez das cenas produz em nós uma sensação por vezes onírica, por vezes saturada e, na maior parte do tempo, nos remete a falta de clareza que temos quando nos esforçamos para detalhar uma memória do passado.

Na fotografia, preponderam os tons de marrom, bege, branco encardido, nos dando uma sensação de naftalina, poeira, como devem ficar os objetos de quem partiu e deixou de movimentar o pó acumulado do mundo com seu vento de vida. 

Enquanto a mulher tenta recriar os passos da vida enigmática do seu marido Ismail na Jordânia, vamos descobrindo junto com ela as notícias de como ele morreu em um acidente de carro. O primeiro objeto a qual ela tem acesso é o celular do esposo. Relutante, não sabe muito bem o que fazer ou o que esperar daquela investigação iniciada em busca de algo que nem ela mesma parece saber.

Na capa do celular encontra documentos, cartões de crédito e algumas fotos tiradas em Polaroids. Escondido, no meio da carteira, há um colar de ouro que ela parece reconhecer e passa a usar, a partir daquele momento. Sentida, se satisfaz com essa descoberta e não segue a investigação no telefone celular. 

Costumo escutar dos pacientes uma certa ânsia e a curiosidade em saber as coisas mais íntimas de seus amantes e familiares. Tendo a oportunidade, espiam nos telefones alheios, vasculhando informações que eles nem mesmo sabem que procuram até encontrar. Depois, com qualquer tipo de informação desprezível que encontram, passam a sofrer por não saber como agir diante do que fora revelado. Alguns ainda sofrem de culpa e vergonha, mas gozam da satisfação de terem atravessado um muro do espaço íntimo de uma pessoa a qual ninguém deveria poder entrar sem ser convidado.

No filme, acompanhamos o cuidado de uma esposa que pode descobrir qualquer coisa que queira no apartamento e nas mensagens de celular do marido, mas hesita. Quer saber do esposo de outra forma, recriando seus passos vivos pelos lugares habitados por ele na cidade. 

Ela é surpreendida por um aviso de um dos moradores da cidade solicitando que vá embora enquanto é possível. O tom da mensagem revela o receio de uma certa maldição referida à presença das montanhas na cidade que, com o tempo, podem nunca mais permitir que ela vá embora.

Ela acende calmamente seu cigarro, enquanto escuta um pianista cantar no bar do hotel e vagueia com o olhar perdido. O que há para descobrir sobre a morte de alguém que já se foi? O que há para descobrir sobre a vida de quem já não existe mais? O que há mais a temer?

O curta é um estouro como um tiro a seco. Ficamos sem ar, cheios de perguntas, escutando o sussurro sútil e abafado que nos lembra que logo, nós vamos passar exatamente por isso, com alguém que amamos muito. Quanto mais vivemos, mais sabemos que não escaparemos do encontro inevitável com a morte de muitos dos que amamos, antes de chegar nossa vez.

Sabemos que somos mortais. Tentamos lidar constantemente com todo tipo de medo e receio dessa informação que por vezes esquecemos que antes de chegar nossa vez, nesse encontro trágico com o fim da vida, ainda iremos viver muitos outros encontros com a morte a espreita, buscando as vidas dos que vieram antes de nós.

Afinal, não é apenas o mar vermelho que nos faz querer chorar. É, sobretudo, a inabilidade de nos despedir sem ter a chance de dizer adeus. Ficam as letras, as memórias fragmentadas e a proximidade assombrosa com o fim da vida.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Ismail, eu e você. Em: www.alineaccioly.com.br

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